segunda-feira, 16 de novembro de 2020

3. A Casa (3.3. Tradutor, revisor, designer, paginador, marqueteiro)


O verbete desta semana é sobre a tradução e a sua existência enquanto prática participante no contexto editorial. Ora, se política é também o que se manifesta através de ações que acarretam uma finalidade, a tradução é então um ato político. Isto quer dizer que quando se traduz um texto de uma língua de partida para uma língua de chegada, estamos implicitamente a disponibilizar um conteúdo até então não existente numa língua. Ao adquirir uma linguagem que possa transmitir uma realidade, tornamo-nos capazes de falar. “Quando falamos, falamos de um lugar. De um lugar de enunciação”. É partindo desta premissa, que proponho um outro olhar sobre a questão do lugar da tradução.


O meu primeiro ciclo de estudos superiores foi em tradução. Concluí a licenciatura em 2016.  Na altura, as circunstâncias e a idade não me permitiram ver uma série de aspetos que estiveram desde sempre ligados à tradução enquanto motor e prática. Se traduzir é, segundo Umberto Eco, dizer quase a mesma coisa, o que estamos a fazer é na realidade transferir conteúdo de um sistema linguístico para outro. Do inglês para o português, ou do português para o francês, a finalidade é sempre a mesma, isto é, passar informação entre dois lugares diferentes. A importância da tradução concretiza-se no acesso e disponibilização de autores, ideais, teorias, textos e tudo o que está intimamente relacionado com a palavra.


A língua deixa de ser uma barreira para muitos leitores quando se publica um livro até então desconhecido, numa língua materna partilhada por uma comunidade de falantes. Quantas vezes nos debruçamos sobre a melhor maneira de chegar até a um texto quando este não se encontra disponível numa língua que saibamos ler? É com um enorme apreço que reconheço determinadas escolhas que algumas editoras assumem aquando da elaboração do catálogo editorial. A título de exemplo, tanto a Antígona como a Orfeu Negro, duas editoras já referidas pela turma, têm publicado em português textos de figuras incontornáveis nas áreas dos estudos de género e teoria queer como Angela Davis, Mary Wollstonecraft, Maya Angelou, Natália Correia1, Bell Hooks, Grada Kilomba, Judith Butler, Silvia Federici. Estes são alguns nomes de escritoras que escreveram textos basilares para uma crítica e desconstrução do andro e falocentrismo, correntes que parecem justificar a adoração cega pelo homem, enquanto unidade absoluta.


É ao trazer estas vozes para uma comunidade de falantes onde não havia ainda forma de se expressar por várias razões, que defendo a ideia com que comecei o texto. Traduzir é sim um ato político. Permitir com que certos nomes e certas vozes possam ser relidas numa outra língua é permitir que diferentes corpos e identidades agora possam gritar: O 25 de abril também se fez para as prostitutas e para os paneleiros.


(Note-se a urgência das temáticas sobre o feminismo e a teoria queer quando o catálogo das editoras é ainda predominantemente masculino, marca visível dos tempos onde a escrita era entendida como prática do homem).

1. Natália Correia, embora portuguesa, insere-se unicamente nesta enumeração pela sua importância no contexto nacional na segunda metade do século XX nas matérias do feminismo e da sexualidade. Esta nota de rodapé explica a inserção de uma autora portuguesa numa lista de nomes cujas obras foram maioritariamente publicadas em inglês.


Ser mulher negra em Lisboa | Carla Fernandes | TEDxLisboa

https://www.youtube.com/watch?v=fWhAGbu2RUI


O Estado Novo dizia que não havia homossexuais, mas perseguia-os, São José Almeida

https://www.publico.pt/2009/07/17/sociedade/noticia/o-estado-novo-dizia-que-nao-havia-homossexuais-mas-perseguiaos-1392257


1 comentário:

  1. Daniel, penso que, traduzir, tal como qualquer outro trabalho, pode e deve ser político. Incluir mais gente e perspectivas diversas para nos enriquecermos e ao outro. A nota de rodapé se transformou em destaque. A palestra sobre ser mulher negra em Lisboa diz tudo: "nós já nos posicionámos. agora, que histórias queremos ouvir e como vamos agir?"

    Obrigado.

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