TPC: Isto foi-vos dado para ler, mas só pela rama discutido em aula. Espreitem, é bem interessante: o estranho caso Gordon Lish/Raymond Carver
Há muitos artigos disponíveis online. Aqui ficam dois: The power of an editor; Amostras para comparação.
Um poema de Carver que é uma tradução da voz alheia:
You don't know what love is (an evening with Charles Bukowski)
2. Tu és o teu cartão de visita
2.1. Arenga do juiz ao júri nos filmes-de-tribunal americanos: «Os senhores por favor vão ignorar o que foi dito/mostrado nos últimos cinco minutos por este advogado maroto...» Mas claro que o júri não pode (a menos que esteja noutro filme, o dos Men in Black) esquecer de propósito o que viu/ouviu.
Moral: tudo o que fazemos é trabalho. Não há acasos - o truque é treinar tanto que uma coisa treinada parece acaso. Tornarmo-nos naturais. E, como diria uma personagem num belo filme de Almodóvar, «Ai filhos, custa tanto ser autêntica. Esta anca, 75 mil pesetas. Operação ao nariz, 80 mil pesetas. Os seios, 100 mil pesetesas...»
Autenticidade e narutalidade naturalidade trabalham-se. Era bom, se me contratassem para ir tocar piano numa festa e eu numa semana aprendesse. Ou, melhor ainda (mais lucro) só aprendesse cinco minutos antes de lá chegar.
Ronaldo e Mozart têm isto em comum: ambos foram obrigados a praticar muito deste crianças. O privilégio de Mozart foi ter um pai músico, que ao ver que o miúdo tinha jeitinho o disciplinava e obrigava a fazer harpejos; o de Ronaldo foi ter pais meio ausentes, que não lhe podiam assegurar uma educação formal adequada e o deixavam na rua a jogar à bola. Por sorte, para este e outros craques, jogar à bola na rua não era brincadeira, era também fazer harpejos ao piano.
2.2. Hermínio Monteiro, príncipe dos editores (1952-2001) e rei do sales pitch
Encontrávamo-nos no Bairro Alto. Conhecíamo-nos desde finais de 70, fizemos as víndimas em França juntos, ele era o rosto da Assírio & Alvim (e um belo rosto, parecia um assírio ou um fenício de Trás os Montes) e era um homem de abraços. Ainda bem que está morto, porque seria muito infeliz durante esta pandemia. Era uma das pessoas mais naturalmente afetuosas que conheci. Espontâneo, também. A Assírio foi a a grande editora independente durante vinte anos. Quando os direitos de autor se alargaram vinte anos, por causa da Europa, o espólio de Fernando Pessoa deixou de estar em domínio público - e um dos golpes de génio do Hermínio foi convencer a família a deixar a sua editora (que até então nada tinha a ver com Pessoa, só editara as cartas de amor com Ofélia) ficar com os direitos exclusivos. Antes, já tinha conseguido reunir um catálogo interessante: bons poetas, com Mário Cesariny e Herberto Helder à cabeça, os livros do então best seller Miguel Esteves Cardoso (o primeiro mupi em Portugal a promover um livro), uma rede de bons contactos com a imprensa, a ideia de que - para um poeta vivo - «publicar na Assírio» era como, em França, ter a obra na Pléiade. Veja-se o que disse recentemente Lobo Antunes: «Entrar na Pléiade é como receber o Nobel».
Levei muitos anos a reparar que, quando o Herminio me encontrava às duas da manhã no Bairro Alto e me falava entusiasmente de «um novo autor», era sempre da casa e era sempre um livro acabadinho de sair. Nunca dormia, o raio do homem.
2.3. Saramago, o homem com cara de tartaruga
Parecia uma tartaruga das Galápagos, daquelas que a evolução obrigou a ter um pescoço esticado. E não sou eu que o digo, mais de um cartunista o observou. Saramago era alto (a sua maior qualidade), seco (hoje uma qualidade, mas antes nem por isso), com um rosto fechado, boca larga sem lábios e, desgraça para um escritor (pior seria para um poeta), careca desde cedo. Não era de boas famílias (ao contrário de Sophia, Lobo Antunes e tantos outros), não era sequer burguês de pleo direito, e isso tornava-o um bocado o homem sem jeito. O seu contra-ataque? «Ah é, tenho cara de amanuense? Pois eu dou-vos o amanuense!» E até ao fim da vida andou, fato cinzento, camisa branca, gravata sem desenhos giros (esquilos, pandas, bandeiras do PC), óculos de massa, ar chato. Ah, mas depois quando escrevia e falava era tudo menos chato. E era arrogante, a defesa dos tímidos: eu sei que sei escrever e pensar, meninos. E, mais do que isso, sei ripostar.
3. A caça e a pesca
Na caça, nós vemos o alvo, sabemos para onde apontar, se falharmos é por o alvo estar demasiado em movimento, termos falta de pontaria ou o equipamento (o arco) não ser o adequado.
Na pesca, também convém ter o equipamento adequado (temos sempre um leitor-alvo, temos sempre um plano), mas não sabemos onde estão os peixes - nem sequer se ali os há. (Ver o estranho caso da Byblos , a livraria inteligente.) O trabalho em volta do livro é muito mais pesca; já a revisão é caça à gralha.
É preciso um plano - ter o catálogo para 21-22 já fechado - mas ter a flexibilidade suficiente para o abrir, se surgir algo, e para aceitar que alguns livros (até por o idiota do autor ter uma crise da folha branca) vão falhar.
Plano e capacidade de improviso são poderes complementares. Sem plano, ficamos curtos; se só cumprirmos o plano, curtos ficamos.
Isto aplica-se a todas as áreas do trabalho editorial, desde a escrita à distribuição.
Um livro pode sempre voltar à vida - ou porque um crítico o recuperou, ou porque houve filme, ou porqu o gosto da época mudou, etc.
A verdade é que o nosso produto não é visto como necessário. É até percebido (injustamente, se compararmos com outros produtos) como caro.
4. História da minha roupa e do meu relógio
4.1. O relógio é funcional e está sempre dez minutos adiantado. Um truque: quando vejo que estou em cima da hora fico em pânico (embora metade do meu cérebro saiba que está adiantado) e ganho dez minutos com os quais posso fechar o arco da aula, o plano que entretanto se desviou em voltas barrocas e notas de rodapé e intervenções extemporâneas de alunos (salvo erro, o Francisco) a perguntar o nome de uma nova editora do Portoi, a Bazarov.
Tem algarismos árabes a preto sobre fundo branco porque é o mais fácil de ver discretamente. Já tive relógios giros, tipo um Swatch translúcido, mas não são práticos.
De caro, só tenho os óculos, dos quais preciso para ler e ver, e os sapatos, a única peça de vestuário que trabalha. (No meu caso, muito: 106 quilos de músculo cultural.)
4.2. Todos escrevemos «para alguém». Podemos não saber muito bem para quem. Na linha de pesca, ponho isco para lírio (um belíssimo peixe dos Açores) mas o que vem à rede é carapau ou, pior, uma bota velha. Nunca sabemos quem é o auditório real (a triste história do meu filho de seis anos que apanhei a folhear a minha Playboy) mas devemos saber qual é o que esperamos/desejamos. Plano & realidade, plano & facto. O conto de Rubem Fonseca (no livro Feliz Ano Novo) sobre uma revista feminina onde todos os jornalistas são homens fingindo que são mulheres e onde depois descobrimos que os leitores também são todos homens e os que escrevem para o correio sentimental também são homens, embora (tal como os jornalistas) assinem como mulheres.
Quando era só um canibal serial killer mau como as cobras, e apenas personagem secundária no romance Red Dragon, era Hannibal Lektor; depois Thomas Harris percebeu que tinha descoberto sem querer um filão, o homem virou canibal fofinho e essa mudança de personalidade foi acompanhada de uma nuance no nome: Hannibal Lecter. Continuava canibal e serial killer mas já só comia o fígado aos maus, por isso passou a ser boa pessoa.
5. Concurso de legendas
O exercício de adequação, harmonia, coerência. Todos os participantes estão de parabéns, todos eram certeiros (e eu não tinha quaisquer dúvidas de que assim seria), uns puxavam a referências mais crípticas, outros mais limitadas no tempo, outros mais políticas, mas todos leram certeiramente a imagem. Agora é preciso um pouco de teatro na cabeça, e o Olavo (salvo erro foi ele) teve de repetir o tom com que falou, para o interlocutor entender melhor.
Exemplos: o guionista e o desenhador, numa BD. O guionista, mesmo sem saber desenhar, também desenha. O outro depois reinterpreta e melhora, mas precisa de ter percebido bem a ideia do outro para a melhorar.
O editor a explicar o livro ao capista, ao superior, aos vendedores, aos jornalistas.
E ganhou a Júlia, com a Catarina a fazer troça de alguém muito respeitável a seguir.
[Continua, se me/vos ocorrer algo mais.]