Manuel Afonso
Gabriel Matzneff tem hoje quase 85 anos. É um escritor francês com uma extensa obra, que atravessa a segunda metade do século XX até à actualidade. Em 2013 foi vencedor do Prémio Renaudot, um dos mais importantes prémios literários de França. Matzneff é pedófilo, assumido. Publicou diários íntimos em que se gabava das relações tidas com crianças. Foi inclusive activista pela pedofilia, lutando para ver este crime aceite como um tipo de diversidade sexual legalmente reconhecida.
Vanessa Springora, editora e autora, foi um dos seus alvos. A citação que abre esta nota é dela. Springora tinha 13 anos, ele 50. As marcas destrutivas desta “relação”, diz, persistem até hoje. Agora publicou e editou um livro assumidamente autobiográfico, sobre essa experiência: Consentimento. As suas reflexões são várias e podem ser lidas em entrevistas, além do próprio livro. Algumas delas cabem no nosso tópico: o que é editar?
Ainda não pude ler o livro mas não pude deixar de comprá-lo, no mesmo dia em que li a crítica e a entrevista que cito, ambas no Ípslon. Vi num documentário da Netflix (Os Dilemas das Redes Sociais, que recomendo) que, para muitos dos utilizadores de Facebook e Instagram, receber likes liberta endorfinas e, portanto, vicia. A mim são os livros que me causam esse efeito e as palavras de Springora ao Ípslon despertaram em mim a atração irresistível do adicto. Mas não precisamos de ler Consentimento para entender que esta história, a que o livro conta e a do livro em si, sendo sobre muitas coisas, é também sobre edição.
Como foi possível, durante décadas, editoras e editores consentirem em publicar livros autobiográficos que consistiam não só na apologia mas na confissão de um crime hediondo? O que fazer hoje, com as obras de Matzneff? Poderá Edição rimar com Reparação?
Springora dá-nos algumas pistas. As suas reflexões são triplamente importantes, como sobrevivente, como autora e como editora. Ela opõe-se à censura, defende antes a contextualização. Mas não se opõe à Ética e à Responsabilidade:
A autora acaba por levar a escrita, a publicação e a edição para um outro plano. Ao reescrever a sua história, ela intervém, não no papel mas na esfera pública, sobre a obra e o percurso de Matzneff. Contextualiza, enquadra, media – edita.
O que ela pretende não é vingança. Nem tão pouco é justiça, no sentido judicial da palavra: “O que me interessa hoje são os símbolos, não é a caça ao homem, não é colocar na prisão um senhor que tem 84 anos, que está doente e que provavelmente se tornou inofensivo.”
As últimas palavras do prefácio de Consentimento são a confissão de um propósito: “apanhar um caçador na sua própria armadilha, prendê-lo num livro”.
Um livro pode ser uma armadilha. Pode ser redenção e reparação.
Obrigado pela partilha Manuel! Este já está na lista de leitura.
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