segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Homens simples com H (uma proposta de pontuação)

Francisco Rúbio


 Já o contei e repito. No dia seguinte à eleição do Papa Francisco, voltei a vê-lo na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma. Vi um Papa que andava como um homem comum. Escrevi: “ele anda como toda a gente.” Gosto de pescar raridades destas.

 

Ontem, fui ao lançamento do livro dum amigo. O fotógrafo Rui Ochoa. É um livro de assunto único: sobre um homem, num momento muito importante (dele), durante o desafio para conseguir o desejo duma vida. Na segunda foto em que o vemos - na primeira está de costas -, ele está em casa e acaba de saber que conseguiu. É um momento forte e um disparo certeiro do fotógrafo, mas o que me traz aqui não é este. É o homem. O livro é sobre um homem que dá conta das pessoas à volta. Sabe-se da vida, Como os outros se dão conta de nós, com os olhos e com as mãos. Os olhos que nos procuram as mãos que pousam em nós. 


Na campanha presidencial de Marcelo são esses: o homem e o momento. Ele farta-se de se dar conta dos outros. Na Bairrada, com o leitão espetado e a entrar no forno, Marcelo torce o pescoço para olhar o assador. E até aos adversários da campanha ele aproveita para lhes pôr uma mão no ombro. Eis o essencial que o livro de Ochoa nos mostra: o balanço duma presidência faz-se, claro, no fim do mandato e assim será com este. Para já, sabemos que de comum ele tem pouco e que ele tem um interesse comum pelas pessoas - ambas são raridades num Presidente. Pode ser o começo duma bela não sei o quê.

Exercício em Aula - Outra proposta

João Mourão

 

Decidi seguir o exemplo da Joana e colocar uma proposta para a resolução do exercício feito em aula. Pelo menos assim, há um troca da espécie da que não pôde haver em aula. Notam-se algumas diferenças interessantes. O texto da Joana parece-me, por vezes, mais 'arrumado', e escolhemos sentidos diferentes para as mesmas secções. E há uma parte relativamente à qual estou curioso quanto à decisão do próprio autor, mas até agora abstive-me de o googlar. 

(Usar itálicos - é permitido? Não o fiz, mas senti-me tentado.)

 

O homem e o seu momento 

Já o contei, e repito: no dia seguinte à eleição do Papa Francisco, voltei a vê-lo na basílica de Santa Maria Maior em Roma. Vi um Papa que andava como um homem comum. Escrevi: “Ele anda como toda a gente.” Gosto de pescar raridades destas.

 

Ontem, fui ao lançamento do livro dum amigo, o fotógrafo Rui Ochoa. É um livro de assunto único, sobre um homem. Num momento muito importante dele, durante o desafio para conseguir o desejo duma vida - na segunda foto em que o vemos (na primeira está de costas) -, ele está em casa e acaba de saber que conseguiu. É um momento forte e um disparo certeiro do fotógrafo, mas o que me traz aqui não é este. É o homem. O livro é sobre um homem que dá conta das pessoas à volta, sabe-se da vida como os outros se dão conta de nós, com os olhos e com as mãos. Os olhos que nos procuram, as mãos que pousam em nós.

 

Na campanha presidencial de Marcelo, são esses o homem e o momento. Ele farta-se de se dar conta dos outros na bairrada com o leitão espetado e a entrar no forno. Marcelo torce o pescoço para olhar o assador e até aos adversários da campanha ele aproveita para lhes pôr uma mão no ombro. Eis o essencial que o livro de Ochoa nos mostra: o balanço duma presidência faz-se claro no fim do mandato, e assim será com este. Para já, sabemos que de comum ele tem pouco e que ele tem um interesse comum pelas pessoas. Ambas são raridades num presidente. Pode ser o começo duma bela não sei o quê!

 


domingo, 29 de novembro de 2020

6. Da edição amadora à edição profissional (6.3. Onde pára o livro?)



Tenho pensado bastante sobre o significado do livro. Ao observar os exemplares que fui adquirindo ao longo dos últimos anos, eis que chego a uma conclusão. Por mais livros que arrume na minha estante, não existe uma cópia que sintetize o(s) significado(s) que faz(em) do livro um objeto. Procuro inutilmente um modelo que possa explicar o sentido semântico do que entendemos enquanto livro. Como sabemos estar diante de um livro se o mesmo se apresentar num formato divergente?  A etimologia recorda-nos que a palavra livro deriva do latim liber. Este termo era utilizado para designar a película encontrada entre a madeira e a casca exterior da árvore, da qual se fazia a matéria-prima que, mais tarde, serviria para a fabricação de uma pasta, que corresponderia ao papel nos dias de hoje.

Ao recordar o contributo de Ferdinand de Saussure no campo da linguística, será interessante pensar no livro à luz do esquema seguinte: Signo significado significante. Segundo a dicotomia saussuriana, o signo traduz-se na combinação do significado e significante. O livro é, conceptualmente, a junção do significado (conceito mental de livro que reside no conteúdo) com o seu significante (imagem acústica ou gráfica de uma palavra que reside na forma). Assim, livro enquanto signo é uma unidade linguística possuidora de um significante (imagem acústica) e um significado (conceito). Ao falarem-nos de um “conjunto de folhas ou de cadernos, manuscritos ou impressos, reunidos ordenadamente e cosidos ou colados num dos lados, de modo a formar um volume, geralmente protegido por uma capa de material resistente”, sabemos do que se trata, pois já registámos cognitivamente o que é um livro. Contudo, na segunda aceção lexicográfica, um livro também é:

“qualquer obra literária, científica ou de outra índole que tenha extensão suficiente para formar um ou mais volumes”

A unidade lexical livro remete-nos para três campos. 1. A palavra é uma unidade linguística. 2. É também dotada de uma representação mental. 3. Existe ainda na forma gráfica ou sonora. E.g. LIVRO = (imagem mental) + li.vro . ˈlivru (palavra falada ou escrita). A referência da teoria saussuriana foi lembrada, a fim de pensarmos no livro num plano conceptual e não apenas material. As paragens por onde se estabeleceu são hoje múltiplas e transfronteiriças. Encontramo-lo digitalmente mas também em estantes. Tudo é um livro desde que possa funcionar enquanto suporte para o registo pictórico e/ou textual.

Não obstante, as restantes entradas lexicais deixam de fora algumas das formas que o livro apresenta na contemporaneidade. Hoje, o livro transmutou-se, surge agora nos mais variados formatos. Partiu do seu lugar em estantes para vir parar ao ciberespaço, passou a ser imaterial. O texto que passa frequentemente pelos nossos olhos é escrito e lido em ecrãs. Outro fenómeno curioso é o da incorporação de texto em corpos humanos através da tatuagem. Uma breve pesquisa é suficiente para exemplificar este tópico. São inúmeras as pessoas que tatuam palavras, frases ou até textos nos seus corpos. Diria mesmo que, o corpo funciona como livro, no sentido em que passa a servir enquanto recetáculo para um conjunto de palavras ou frases escritas, fazendo das nossas corporalidades um meio por onde se transmitem códigos, ideias e pensamentos. Se um livro existe para transportar (con)textos, porque não fazer do corpo um arquivo onde se registam ideias, lembranças e memórias para a sua leitura? A paragem do livro é subjetiva.

Miguel A. Baptista


Fontes:

Infopédia: livro in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2020. [consult. 2020-11-29 23:28:36]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/livro

Proposta de resolução

Joana Camões Pereira


Divagações sobre a recta final dum mandato

Já o contei e repito: no dia seguinte à eleição do papa Francisco, voltei a vê-lo na Basílica de Santa Maria Maior. Em Roma, vi um papa que andava como um homem comum – escrevi «ele anda como toda a gente». (Gosto de pescar raridades destas.)

Ontem fui ao lançamento do livro dum amigo, o fotógrafo Rui Ochoa. É um livro de assunto único sobre um homem num momento muito importante dele, durante o desafio para conseguir o desejo duma vida. Na segunda foto em que o vemos (na primeira está de costas), ele está em casa e acaba de saber que conseguiu. É um momento forte e um disparo certeiro do fotógrafo, mas o que me traz aqui não é este – é «o homem».

O livro é sobre um homem que dá conta das pessoas à volta: sabe-se da vida, como os outros se dão conta de nós com os olhos e com as mãos – os olhos que nos procuram, as mãos que pousam em nós. Na campanha presidencial de Marcelo, são esses «o homem» e «o momento». Ele farta-se de se dar conta dos outros na Bairrada com o leitão espetado e a entrar no forno. Marcelo torce o pescoço para olhar o assador e até aos adversários da campanha ele aproveita para lhes pôr uma mão no ombro! Eis o essencial que o livro de Ochoa nos mostra: o balanço duma presidência faz-se, claro, no fim do mandato e assim será com este.

Para já, sabemos que de comum ele tem pouco e que ele tem um interesse comum pelas pessoas – ambas são raridades num presidente. (Pode ser o começo duma bela não sei o quê.)

sábado, 28 de novembro de 2020

O exercício da aula (e, mais tarde, o sumário)

 O exercício faz-se a dois, como disse: um monta a armadilha, tirando pacientemente a pontuação, aspas, maiúsculas (leva dois minutos) e o outro tem de tentar com que o texto volte a fazer sentido. 

Se o repetirmos todos os dias durante um mês (tipo palavras cruzadas, num par de minutos) melhoramos as nossas capacidades - quanto melhoramos é problema vosso, não meu. 

Ah, por favor, ponham um título. Se puserem palavras-chave no google é provável que encontrem logo a crónica original. Mas o objetivo não é acertar, é tentar.

E é normal que haja discrepâncias em relação ao original: 

[Título]

já o contei e repito no dia seguinte à eleição do papa francisco voltei a vê-lo na basílica de santa maria maior em roma vi um papa que andava como um homem comum escrevi ele anda como toda a gente gosto de pescar raridades destas ontem fui ao lançamento do livro dum amigo o fotógrafo rui ochoa é um livro de assunto único sobre um homem num momento muito importante dele durante o desafio para conseguir o desejo duma vida na segunda foto em que o vemos na primeira está de costas ele está em casa e acaba de saber que conseguiu é um momento forte e um disparo certeiro do fotógrafo mas o que me traz aqui não é este é o homem o livro é sobre um homem que dá conta das pessoas à volta sabe-se da vida como os outros se dão conta de nós com os olhos e com as mãos os olhos que nos procuram as mãos que pousam em nós na campanha presidencial de marcelo são esses o homem e o momento ele farta-se de se dar conta dos outros na bairrada com o leitão espetado e a entrar no forno marcelo torce o pescoço para olhar o assador e até aos adversários da campanha ele aproveita para lhes pôr uma mão no ombro eis o essencial que o livro de ochoa nos mostra o balanço duma presidência faz-se claro no fim do mandato e assim será com este para já sabemos que de comum ele tem pouco e que ele tem um interesse comum pelas pessoas ambas são raridades num presidente pode ser o começo duma bela não sei o quê


quinta-feira, 26 de novembro de 2020

2.2 Coerência Interna

João Mourão


    É uma expressão curiosa, capaz de nos lançar numa espiral interminável de possíveis aplicações suas. O que é que não é suscetível de ser pensado de acordo com a sua coerência interna? Penso num texto e na sua coerência interna. Penso nos elementos desse texto e na coerência interna de cada um deles. Penso na coerência interna que se constitui na associação entre a primeira e a segunda. Penso na edição do texto e na forma como contribui para a coerência interna do mesmo. Penso na edição do livro enquanto objeto e como contribuí para a coerência interna do texto. Penso na edição de uma coleção à qual o livro pertence e como contribuí para o respeito pelo livro e pela sua coerência interna individual e, por outro lado, da sua coerência interna enquanto elemento de uma coleção cuja coerência interna pode, por sua vez, responder a uma outra série interminável de coisas: à coerência interna de um determinado tempo, de um certo autor, de uma disciplina ou de uma corrente literária. E por aí em diante. Portanto, não sei a que coerência interna nos devemos – se é que dever é a palavra – referir em primeiro lugar, ou se há uma que seja primeira face às outras, ou se é legítimo a referência a uma sem as outras.

    É a minha impressão que se navega por partes, cuidando de cada interveniente e de cada processo, sem perder de vista o todo. No caso da edição, talvez vá da coerência interna da palavra e da oração até à coerência interna do mercado, passando pela que surge nas contribuições do paginador, do capista, e também nas do livreiro e do leitor. E, ainda assim, sinto que lhe corto o caminho, pois onde pára o livro? Certo é que não cabe tudo num verbete. Mas eis o que me parece ser a visão aérea do estado de coisas: coerência interna implica uma visão de conjunto e, por isso, do que é incluído e excluído, e do que fica na fronteira. Há coerência onde o elemento extrapola o seu espaço recôndito e alastra-se a um projeto maior, como o livro que antes estava isolado e escondido e que agora se junta a outros numa coleção ou num plano de leitura, sem querer isso dizer que fosse incoerente enquanto aguardava. E há coerência quando a visão do todo justifica cada parte sua em retorno, mesmo que um dia cada parte siga o seu caminho de forma mais solitária. Cada membro envolvido é uma prótese para todos os outros, alargando o escopo da sua função enquanto se exibe a si mesmo.

    À medida que escrevo, procurando em vão ser sucinto, apercebo-me de que não há modo de escrever sobre coerência interna de forma completa em poucas ou muitas linhas. Talvez essa possibilidade de ser sempre preenchida de uma outra maneira, na sua ampliação ou na sua redução, seja parte dessa coerência. Enfim, não há como terminar isto, nem sei porque pensei que ou se haveria como. A coerência interna está em todo o lado a tentar exibir uma regra que nos dê mais que gramática de superfície para realizarmos o trabalho desejado. Está no texto e está fora dele, e requer sempre uma equipa, cuja listagem parece interminável, para se manter. Isto não é uma conclusão, mas desconheço se há fim para o tópico que vá para lá da mera afirmação da sua necessidade.

9.3. Os papéis do livro

Francisco Rúbio



A cerca de 232.777778 graus celsius começamos a olhar apenas para imagens transformando-nos em seres obedientes, passivos e cinzentos. O ecrã na parede viajou para a nossa mão. Quanto tempo faltará para penetrar a nossa mente?


“Se queremos ver uma imagem bonita, vamos ao museu. Se queremos ler um livro não precisamos de imagens bonitas. Sempre quis que a Bazarov fosse um projecto sóbrio onde o texto fosse o protagonista.” A letra como imagética ou uma proposta para o regresso ao futuro.


Como leitor estou como Camilo Castelo Branco «sinceramente, não sei corrigir-me do

vício das divagações». Assoberbado pelo síndrome das múltiplas abas, tento apagar vários fogos, ao invés de os produzir. Apesar de possuir toda a informação (ao contrário de Passos Coelho que "não tinha consciência que essa obrigação de pagar impostos lhe era devida”) para combater estas formas de multitasking que nos reduz, acabo por cair na armadilha dos modos contemporâneos. Leio o editorial de um amigo a pedido, passo os olhos por uma crónica breve do The Intercept brasileiro, persigo as edições de Baldwin na Alfaguara, oiço uma Garganta Solta sobre o hip-hop português, abro o Clepsydra de Camilo a meio e paro.


Ler. Necessito ler em voz alta o seu poema: Branco e Vermelho. Será isto um leitor? 


Um viajante desorganizado que se permite habitar imaginários diversos. Leio e anoto, sublinho e penso, junto e termino a jornada escrevendo. Leitor e escritor misturam-se, transformam-se e surge um outro leitor. 


Levado por uma mão a viajar pelo mundo mais espesso e privado de tantos autores. Escrever é coisa séria, como diria Matilde Campilho. E ler coisa séria será, acrescentaria eu.


“There must be something in books, something we can’t imagine, to make a woman stay in a burning house; there must be something there. You don’t stay for nothing.”

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

9.4. N̶a̶d̶a̶ Tudo está por inventar

Ana Filipa Leite

No prólogo do seu livro Techniques of the Selling Writer, Dwight V. Swain define o tipo de escrita que vai abordar como “the process of creation as applied to fiction… the conjuring up of original stories out of the nether reaches of your mind.” Mas será que as histórias escritas hoje em dia ainda podem ser originais? Não foi já tudo feito? Os autores nossos contemporâneos não reciclam apenas material antigo?

Num tempo em que os vários géneros literários são dominados por convenções/tropos e em que existem inúmeras “fórmulas” para estruturar histórias de sucesso (como o famoso método Save the Cat, de Blake Snyder), podemos ter a sensação de que já todas as histórias foram contadas e que cada livro novo é apenas uma reformulação de qualquer coisa pré-existente. Ugh, outro romance com vampiros? Mais um policial em que a esposa maluca é a assassina? Quando é que alguém vai aparecer com qualquer coisa verdadeiramente nova, fresca, revolucionária?

Ou estaremos a olhar para a noção de originalidade de uma maneira que não pode ser aplicada à criação literária? Afinal, o que são essas “original stories”?

Em A Writer’s Notebook, W. Somerset Maugham argumenta que ninguém consegue ser original quando tenta sê-lo: o artista original é apenas ele próprio e cria a sua arte de um modo que para ele é perfeitamente natural e óbvio. Por a maneira de ser desse artista nos ser estranha, dizemos que ele é original.

E a noção de originalidade de Swain parece ir de encontro à de Maugham:

It’s hard to accept yourself for what you are, sometimes. No one likes to admit to inadequacy or limitation.

[…] Ben Hecht was no Virginia Woolf, nor was Woolf a Eugene Ionesco. Herman Wouk, Erle Stanley Gardner, and A. J. Cronin each found his place.

They did it by being themselves, not fakes of copyists.

Ou seja, a originalidade reside na individualidade. Ela é encontrada quando não aspiramos a ter o estilo de outro artista e criamos de uma forma que nos é natural sem deixar de ser trabalhosa (porque trabalhar de maneira natural não implica deixar de aprender e de tentar evoluir enquanto criador, evidentemente). Temos de encontrar o nosso lugar no mundo e na arte. Podemos escrever mais um romance de vampiros, mas vai ser o nosso próprio romance de vampiros, repleto de uma especificidade e estilo que nenhum outro autor alcançaria tão naturalmente como nós.

E será que queremos mesmo ler algo completamente novo, algo que não retenha ideias com que já estamos familiarizados? Somos criaturas de hábito. Eu já devo ter lido dezenas de romances com mansões vitorianas assombradas, mas se vir à venda um novo acham que não o compro sem pensar duas vezes?

Cada um de nós tem os seus gostos a que volta recorrentemente. Sabemos o que nos agrada e queremos mais do mesmo, mas sempre um bocadinho diferente. E essas diferenças conferem originalidade às obras e aproximam-nas mais ou menos do nosso gosto pessoal.

Eu gosto que mansões vitorianas assombradas sejam incluídas em livros, mas não gosto de todos os livros que as têm. Todos eles são diferentes, apesar de terem aspetos em comum. E são esses aspetos que identificamos como algo de que já gostamos à partida – e não a “originalidade” louca de os livros serem algo nunca antes visto – que nos atraem enquanto leitores.

Tudo é original se não for uma imitação de outra coisa e vamos para sempre poder escrever histórias originais. Mesmo com esta indústria do livro que passa por modas e parece publicar muito do mesmo, nunca vamos ficar sem histórias novas que nos surpreendam.

Inspirarmo-nos em obras já existentes, aderirmos às convenções de um género ou estruturarmos uma história de acordo com um método específico não nos tiram a originalidade que nos é própria, mas também não nos garantem sucesso.

 

Fontes (com links para livros legalmente gratuitos):

A Writer’s Notebook, de W. Somerset Maugham

Techniques of the Selling Writer, de Dwight V. Swain

domingo, 22 de novembro de 2020

2. A natureza da edição (2.3. Uma atividade comercial ou cultural?)

 

Apesar de ter sido extensamente discutido em aula, é importante trazer para a discussão que a natureza da edição também pode ser de caráter interventivo. Entre a dimensão comercial e cultural, existe ainda um aspeto que se encontra presente para além destas duas realidades. Uma editora pode publicar um livro por vários motivos. Quer seja pela previsão do sucesso da edição num determinado mercado, quer pela introdução de um(a) autor(a) numa língua onde ainda não a/o conheçam, há sempre espaço para textos desconhecidos por mais distantes que possam estar.

Todas as palavras podem ser publicadas desde que haja interesse editorial em revelar outras vozes. Partindo de uma hipótese não conhecida ou formulada numa língua, torna-se assim possível ler sobre teorias que não faziam parte do léxico de um idioma. A oferta de nomes ainda não conhecidos num determinado local, permite-nos disponibilizar um conjunto de ideias/textos já disseminados noutras partes do mundo. Numa era cada vez mais pautada pela comunicação digital, assente numa lógica hiper-real, onde os leitores estão constantemente entre o espaço físico e o virtual, é crucial garantir não só a introdução de autores desconhecidos, como também a sua apresentação a uma comunidade de leitores que por razões várias não tinham acesso aos seus textos.

Veja-se o caso de um autor que poderá ser desconhecido no Brasil por escrever em francês, mas que recentemente entrou no circuito literário pelas mãos da editora n-1 edições, cujo catálogo conta já com duas obras traduzidas para o português brasileiro. Para os falantes desta variante linguística torna-se assim possível aceder aos textos de Achille Mbembe, cuja língua de trabalho é o francês. Um outro exemplo interessante é a tradução do livro O Calibã e a Bruxa de Silvia Federici. A editora Orfeu Negro publicou recentemente a obra para o português europeu, permitindo que passasse a estar também disponível numa outra língua que não o inglês. Para os leitores que falam português nas suas múltiplas variantes, é valioso poder contar com tais edições na sua língua materna.

Os dois exemplos anteriormente referidos levam-nos ao início deste apontamento. Existe um caráter interventivo, mesmo que seja subconsciente, quando um livro é divulgado numa língua onde outrora não havia qualquer registo. Para além dos fatores comerciais e culturais tal como o impacto da publicação numa determinada área geográfica ou a receção do livro por parte um público-alvo, uma obra acabará sempre por ressoar em qualquer comunidade linguística que se reveja em tais palavras, independentemente do texto de partida. A intertextualidade funciona como uma substância agregadora que permite-nos elaborar novos textos a partir de outros, aproximando as múltiplas comunidades onde a língua é, por vezes, uma barreira que nos separa.


Miguel A. Baptista


Fontes:

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/03/intelectual-busca-oferecer-visao-afrocentrica-da-modernidade.shtml

https://www.publico.pt/2020/10/07/culturaipsilon/noticia/ponto-vista-mulheres-bandeira-democratica-capitalismo-mentira-1934181

7.1. Livrarias, alfarrabistas, hipermercados

Joana Camões Pereira
O livro está a ser vendido como outra mercadoria qualquer. [Há] distribuidoras que parecem mais transportadoras. Tenho visto várias a desaparecer e a correr mal. Não sei, parece-me que o modelo mais pequeno funciona melhor, com o vendedor mais próximo.

Relato de um livreiro anónimo (o Livreiro 4, segundo um estudo da APEL de 2014) que nos leva a pensar, o que é uma livraria? O que é uma pequena livraria?

(Antes de passar para a linha de baixo, reflicta. Imagine tantos espaços quantos conseguir.)




Provavelmente terá pensado num espaço relativamente pequeno, com livros usados ou a estrear (porque não ambos?), preservando as típicas estantes em madeira e as montras que mais do que promover obras, promovem o conteúdo da casa (não é preciso ler o pequena no sentido literal e pensar na Livraria do Simão). Mas, então, e pensou num quiosque? Numa loja de conveniência? Numa bomba de gasolina?! Provavelmente não, mas são todos estabelecimentos em que se vendem livros e, nesse sentido lato (abrangido pela definição no Novo Dicionário de Língua Portuguesa de Fidelino de Figueiredo), são livrarias.

Além das famosas cadeias de livrarias (Bertrand, Almedina...) e da FNAC, entre as livrarias mais facilmente reconhecíveis encontram-se as livrarias independentes (RELI), as livrarias de editoras (como a Cotovia antes do enterro), alfarrabistas; depois papelarias, quiosques, CTT; hipermercados, lojas de conveniência, bombas de gasolina; numa dimensão já digital, livrarias electrónicas (quer das próprias editoras, quer de livrarias; para envios ou venda de e-books) e até mesmo contas no olx, bibliofeira, custo justo (quantas relíquias consideradas perdidas não se encontram desta forma em alfarrabistas que não conheceríamos de outro modo?).

Todas estas fontes são parceiras do livro, permitem a sua difusão e longa vida — para cada espaço, o seu público e, claro está, o interesse na mercadoria tem oscilações grotescas.

sábado, 21 de novembro de 2020

3.3. Tradutor, revisor, designer, paginador, marqueteiro

 Daniel Regis

Cada vez mais estou me inserindo e pesquisando sobre o mercado editorial. Entendendo o que faz cada função, quem são as pessoas conhecidas do meio, os editores, preparados, revisores e, bem, o tópico do meu texto, os tradutores. Assim como alguém que estuda roteiro de cinema e, a partir daí, consegue identificar todos os atos de um filme, eu comecei a enxergar as entrelinhas que tem em cada livro que eu leio.

Quantas vezes você pegou um livro lançamento super hypado, que a editora se matou para conseguir publicar no mesmo período que o lançamento original, e nem leu qual era o nome do tradutor? Ele está lá atrás da folha de rosto, junto com o nome do autor e o nome do livro, mas várias vezes nem percebi que tinha alguém lá. Um trabalho tão importante quanto a escrita do próprio livro pelo autor, mas que muitas vezes é tão conhecido pelo público quanto um ghost writer. 


Se não fosse pelo trabalho dos tradutores, precisaríamos aprender grego antigo para estudarmos as ideias de Sócrates e Platão. Teríamos que nos deitar em dicionários poeirentos para apreciar uma obra de Shakespeare. Ou até, se quiséssemos que nossos próprios textos e livros fossem lidos pelas pessoas mundo à fora, teríamos que enviar uma gramática da língua portuguesa junto. Não é atoa que um dos maiores escritores portugueses disse: “São os autores que fazem as literaturas nacionais, mas são os tradutores que fazem a literatura universal.” Saramago sabia da importância dos seus colegas de casa para espalhar o conhecimento pelo globo.


Até para coisas além da literatura, como uma etiqueta de camisa, um manual de máquina de lavar, a descrição de uma embalagem de shampoo, tantas coisas do cotidiano que precisaram passar pela mão de um tradutor e nem nos damos conta.


Na verdade, tem momentos sim que os tradutores são procurados e lembrados: quando se tem erros na tradução. Chega a ser raro as vezes que alguém elogia a tradução de um livro. Normalmente, as pessoas já pensam nas obras traduzidas como se elas tivessem sido escritas em português direto no original, como se fosse um livro nacional, mas é justamente ai que se vê uma boa tradução. Porém, a maioria das vezes que uma tradução é “chamada para a mesa”, é quando ela é ruim, assim como o meu exemplo porco de “bring to the table”. 


Entretanto, creio que com as redes sociais os tradutores estão conseguindo se mostrar mais presentes nesse mercado e nesse meio e, junto com, ou até, por conta disso, os leitores estão se importando mais com o trabalho feito pelos tradutores. Estão abrindo os olhos, lendo o roteiro e enxergando que, em um livro, existe muito mais além da história.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Sumário 19/11

Pontuação: UM CAÇADOR TINHA UM CÃO E O PAI DO CAÇADOR ERA TAMBÉM A MÃE DO CÃO.


A pena é mais forte que a espada

Valerian.

Capa e contracapa de Inside Story de Martin Amis. 

O editor é um leitor?

O editor está acima ou abaixo do autor? 

O calendário agrícola


O mito do mundo do livro como mundo outro. 

Tony Montana





5. O Caso da Ameaça Eletrónica

Manuel Afonso


As Prateleiras do Confinamento

Durante o Grande Confinamento as ruas ficaram vazias. Grande parte da população mundial foi remetida aos seus domicílios. A vida pública entrou pela doméstica adentro, mediada pela tecnologia. Zooms, WhatsApps, Instagrams, Facebooks e outras redes são há muito uma nova esfera pública. Com a meia humanidade remetida ao lar (a parte da humanidade o que tem) estes mediadores telemáticos tornaram-se a única esfera pública possível enquanto engoliam a privada.

Na era pós-Gutenberg, essa função tem sido a dos livros. Dos livros em papel, pois claro. A revolução Gutenberguiana foi essencial à construção da esfera pública, da sociedade civil, como a conhecemos. Apesar de pública, esta nunca ficou à porta do domicilio. Com a alfabetização crescente, progressivamente, estas unidades contentoras de sociedade entraram casas a dentro. Bíblias, enciclopédias, Readers Digests, Manifestos Comunistas e, claro, romances, fizeram civilização nas estantes de casinhotos e palacetes.

Seria de esperar que as novas mediações cibernéticas remetessem o livro em papel para o bidão de reciclagem da história. Mas não.

Durante o Grande Confinamento as ruas ficaram vazias e as estantes, recheadas de sucessões de lombadas, reconquistaram valor. Conferencistas e comentadores televisivos, arredados para o cenário doméstico, exibiam prateleiras livrescas, alegando um pretenso conhecimento que regularmente contrastava com a aridez dos seus comentários. Paradoxalmente, o livro em papel ganhou um novo valor graças à exigência telemática do Grande Confinamento. Não sabemos se foi valorizado como objecto de leitura. Mas tornou-se essencial como cenário de tele-declarações pomposas, de lives de Facebook ou em reuniões de gente séria via Zoom.

Nas estantes dos ecrãs, nenhum serviço da Vista Alegre, nenhuma nossa Senhora de Fátima florescente nem sequer uma foto emoldurada sobre um napron amarelecido: livros, livros e mais livros.

Em tempos em que o empreendedorismo é o mais sacro dos valores, terá havido quem aproveitasse para alugar estantes previamente enlivradas a comentadores despreparados? Ou existiriam já nas prateleiras deste país arsenais livrescos escondidos, que rivalizam com os de metralhadoras armazenadas em garagens trumpistas, América dentro?


Redes, Capas e Miolos

Diriam os cépticos – e talvez os cínicos – que esta inesperada valorização do livro é tão estreita como as lombadas feitas bites. Dirão que o livro em papel foi apenas despromovido a bibelot – e não virá bibelot de biblos1? Alguns neurónios mais contorcidos desconfiarão que não há miolo dentro das lombadas enfaixadas nas prateleiras-zoom...

Porém, para pasmo dos biblio-cépitcos, se formos mais fundo nas redes pescaremos mais provas da resiliência do Livro.

Não foi só emprateleirado e fechado que o Livro se revalorizou durante o encerramento global. Mais uma vez, as novas mediações cibernéticas ajudaram a dar um novo palco ao seu predecessor. Desta feita, foi o Desafio dos Dez Livros, que viralizou no Facebook, a cumprir esse efeito.

O desafio era simples e muitos se deixaram t(r)agar por ele: durante dez dias, publicar dez capas de livros marcantes e, a cada um deles, desafiar um amigo para fazer o mesmo. Dez capas, dez amigos, dez dias, milhões de livros.

Leitores e leitoras pelo mundo, fechados nas suas casas, recomendaram leituras à rede. Exibiram capas físicas transmutadas em megabites e desafiaram os seus pares a fazer o mesmo. Zeros e uns uniram-se no universo zuquerberguiano para dar vida a correntes de leitura que se sucederam sem fim.

Descobrimos que a vizinha lê Eça, que o primo é louco por filosofia grega, que houve uma geração marcada pelos Filhos da Droga e que ninguém recomenda o José Rodrigues dos Santos, por mais que este venda.

Descobrimos ainda que, mesmo nas redes, ninguém partilha links para ebooks quando recomenda livros. Nem nos remete para a cloud, prateleira de PDF's. O Desafio dos Dez Livros foi feito de capas, postadas no mural, que se sucediam no scroll. JPEG's e PNG's de capas fotografadas em cima do joelho – muitas vezes literalmente – responderam à pergunta orweliana: “Em que é que estás a pensar”?

Decididamente a distopia em que estamos confinados não é o Fahrenheit 451. O Livro em papel reapareceu no digital - o futuro é já hoje e o passado ainda não se foi.


Índices e indícios

E o que é que isto interessa?

Pouco ou nada. Ou talvez alguma coisa. Porque o que se passa nas redes não só tem reflexo no mundo real. É mesmo parte do mundo real. Pelo que tenho cá para mim que, se não cairmos no erro do excesso de entusiasmo, alguma coisa de bom podemos tirar daqui.

Comecemos pela parte do comedimento. O mercado livreiro está cheio de tubarões, é complicado e aldrabado – é mercado. Neste mundo em que o lucro está acima da vida, a cultura está ainda mais abaixo. Sobretudo aquela que exige tempo e literacia para ser consumida. No nosso país em particular, os apoios são poucos, os hábitos de leitura menores ainda e a monocultura é a regra – do eucalipto à edição. Juntemos-lhe a maior crise dos últimos 70 anos.

Já ninguém conta com boas notícias, certo?

Agora que as expectativas estão baixas, podemos surpreender-nos pela positiva. Dizem-nos estudos recentes que, apesar de um tombo grande, o mercado livreiro está a recuperar mais rapidamente que outros. Há razões para isso e podem não ser só nova utilidade “estantânea” das lombadas ou o Desafio dos Dez Livros. Talvez estes sejam até mais efeitos que causas.

É natural que presos em casa leiamos mais. E que o encerramento de Teatros e Cinemas abra livros empoeirados. Para não falar dos viajantes, que tiveram de se remeter a um Melville, a um Kerouac ou a um Sepúlveda, cujas fronteiras nunca fecham. Podemos estabelecer um paralelo com o “índice do batom”. Segundo este, nos momentos de crise em que o consumo de luxo diminui, o público feminino refugia-se em cosméticos baratos, cuja procura aumenta (o machismo subjacente ao conceito diz-nos que foi certamente um homem que o cunhou). Apesar de tudo, há indícios que, num mundo em crise, o objecto livro revele vantagens competitivas.

Afinal, o princípio darwiniano não é a sobrevivência do mais forte mas do mais adaptado: e quem melhor que os livros para se adaptar a um mundo entre quatro paredes? Gutenberg sempre rima com Zuckerberg.






1Não não vem: https://fr.wiktionary.org/wiki/bibelot#%C3%89tymologie. Mas nada nos impede de martelar poeticamente a etimologia!

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Quando o Natal se transforma no ano inteiro

Francisco Rúbio




Tem acontecido um facto algo torpe à minha produtividade nos últimos tempos, sobretudo por causa de amigos e família: tenho recebido livros maravilhosos. Isto, pode muito bem suceder por estar cada vez mais atento a editoras, autores e livrarias. Por isso, falo sobre este assunto mais vezes nos convívios e o resto deve ser explicado, para quem acredita, por aquele livro sobre a lei da atracção. Gostava muito de ter mais tempo para ler. E também gostava de ter menos ideias para escrever enquanto leio. A solução: traço pequenas metas de leitura e anoto (muito). No fundo, precisava de um tempo que o nosso tempo insiste em não me oferecer. Tudo isto, para vos falar nesta edição de Sapiens, um livro presente na lista de desejos há algum tempo. Uma banda-desenhada sobre a evolução da Humanidade parece-me uma boa ideia. Novela gráfica de capa dura, ilustrações coloridas, tom cómico e contemporâneo. Voltar ao início, à infância, quando comecei a ler o Calvin & Hobbes. Nunca mais li banda-desenhada, que me lembre agora. Voltar ao início, há milhares de milhões de anos, quando ainda não havia vida humana no planeta, nem nada que se parecesse. A física através da literatura. Big: matéria, espaço, energia e tempo. Bang: imagens a simplificar toneladas de informação. O livro como mergulho profundo para o cérebro de Yuval Noah Harari. O desafio de comunicar ciência complexa através de fórmulas simples, breves e atractivas. Estes livros com estas edições têm um peso diferente: sentimos que ficam como herança para a próxima geração. A Elsinore, parte da chancela Book Company, reproduziu no nosso país uma ideia capitalista eficaz que pode ser o futuro dos best-sellers. O livro multiplicado em diferentes formatos: livro de bolso, ibuque, audiobuque, banda-desenhada e curta-metragem de animação. Ficamos a aguardar a longa-metragem, a novela e a série de Netflix.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

9.2. Do livro em papel

Francisco Rúbio





Como valorizar o livro em papel? Aproveitando as suas características únicas. Foi feito assim nesta reunião de micro-contos de António Torrado. Este livro, daquelas ofertas irrecusáveis de uma amiga numa visita a sua casa, destaca-se visualmente pelo rebordo a negro das páginas brancas, oferecendo um contraste que enriquece o livro como objecto. Surgem ilustrações fugazes e minimalistas em determinadadas páginas, servindo como apoio para as micro-narrativas. As vozes entre a escrita e a imagem gritam-nos coerência. Um livro simples, bonito e breve. Como se quer neste tempo voraz. Contos mínimos nascidos sempre a partir de apenas uma palavra, como ajuda para preencher os espaços, propositadamente, vazios. Ao longo da obra, são requisitadas as outras palavras, ao leitor, num processo contínuo de imaginação. Complete-se esta obra, então: lendo, observando e reescrevendo.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

3. A Casa (3.3. Tradutor, revisor, designer, paginador, marqueteiro)


O verbete desta semana é sobre a tradução e a sua existência enquanto prática participante no contexto editorial. Ora, se política é também o que se manifesta através de ações que acarretam uma finalidade, a tradução é então um ato político. Isto quer dizer que quando se traduz um texto de uma língua de partida para uma língua de chegada, estamos implicitamente a disponibilizar um conteúdo até então não existente numa língua. Ao adquirir uma linguagem que possa transmitir uma realidade, tornamo-nos capazes de falar. “Quando falamos, falamos de um lugar. De um lugar de enunciação”. É partindo desta premissa, que proponho um outro olhar sobre a questão do lugar da tradução.


O meu primeiro ciclo de estudos superiores foi em tradução. Concluí a licenciatura em 2016.  Na altura, as circunstâncias e a idade não me permitiram ver uma série de aspetos que estiveram desde sempre ligados à tradução enquanto motor e prática. Se traduzir é, segundo Umberto Eco, dizer quase a mesma coisa, o que estamos a fazer é na realidade transferir conteúdo de um sistema linguístico para outro. Do inglês para o português, ou do português para o francês, a finalidade é sempre a mesma, isto é, passar informação entre dois lugares diferentes. A importância da tradução concretiza-se no acesso e disponibilização de autores, ideais, teorias, textos e tudo o que está intimamente relacionado com a palavra.


A língua deixa de ser uma barreira para muitos leitores quando se publica um livro até então desconhecido, numa língua materna partilhada por uma comunidade de falantes. Quantas vezes nos debruçamos sobre a melhor maneira de chegar até a um texto quando este não se encontra disponível numa língua que saibamos ler? É com um enorme apreço que reconheço determinadas escolhas que algumas editoras assumem aquando da elaboração do catálogo editorial. A título de exemplo, tanto a Antígona como a Orfeu Negro, duas editoras já referidas pela turma, têm publicado em português textos de figuras incontornáveis nas áreas dos estudos de género e teoria queer como Angela Davis, Mary Wollstonecraft, Maya Angelou, Natália Correia1, Bell Hooks, Grada Kilomba, Judith Butler, Silvia Federici. Estes são alguns nomes de escritoras que escreveram textos basilares para uma crítica e desconstrução do andro e falocentrismo, correntes que parecem justificar a adoração cega pelo homem, enquanto unidade absoluta.


É ao trazer estas vozes para uma comunidade de falantes onde não havia ainda forma de se expressar por várias razões, que defendo a ideia com que comecei o texto. Traduzir é sim um ato político. Permitir com que certos nomes e certas vozes possam ser relidas numa outra língua é permitir que diferentes corpos e identidades agora possam gritar: O 25 de abril também se fez para as prostitutas e para os paneleiros.


(Note-se a urgência das temáticas sobre o feminismo e a teoria queer quando o catálogo das editoras é ainda predominantemente masculino, marca visível dos tempos onde a escrita era entendida como prática do homem).

1. Natália Correia, embora portuguesa, insere-se unicamente nesta enumeração pela sua importância no contexto nacional na segunda metade do século XX nas matérias do feminismo e da sexualidade. Esta nota de rodapé explica a inserção de uma autora portuguesa numa lista de nomes cujas obras foram maioritariamente publicadas em inglês.


Ser mulher negra em Lisboa | Carla Fernandes | TEDxLisboa

https://www.youtube.com/watch?v=fWhAGbu2RUI


O Estado Novo dizia que não havia homossexuais, mas perseguia-os, São José Almeida

https://www.publico.pt/2009/07/17/sociedade/noticia/o-estado-novo-dizia-que-nao-havia-homossexuais-mas-perseguiaos-1392257


A Bazarov

 Um artigo no Público/ípsilon online (16/11/20): 

Os livros a branco e preto da Bazarov, a editora que nasceu durante a pandemia como provocação

A Bazarov é uma editora de ficção literária e de ensaio sediada no Porto, fundada por Ricardo Costa, que a quer deixar em legado ao filho. “Um projecto descomprometido, provocador e muito pessoal”.

Isabel Coutinho 

16 de Novembro de 2020, 22:28

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Ricardo Costa ao lado de algumas das obras que a Bazarov já publicou neste final de ano PAULO PIMENTA

Uma nova editora, com sede no Porto, foi lançada neste ano de confinamento. “Só podia ser lançada durante uma altura tão difícil, porque a Bazarov é pouco mais do que uma provocação”, afirma o seu fundador, Ricardo Costa, que aos 35 anos se sentia descontente com o panorama da edição em Portugal por comparação com a oferta de qualidade que diz ter em Londres, Inglaterra, onde vive, apesar de vir a Portugal com frequência.

Tinha de fazer alguma coisa para “salvar a educação cultural” que quer deixar ao seu filho, Sebastian. “Uma forma engraçada e eficaz de o fazer” era criar uma editora onde publicasse em português os livros de que gosta. “Sem qualquer tipo de compromisso comercial, sem qualquer tipo de expectativa comercial e financeira, bem pelo contrário. Um projecto descomprometido, provocador e muito pessoal”, conta ao PÚBLICO, numa conversa telefónica.

A Bazarov nasceu com a premissa de publicar dois livros por mês, um de ficção e outro de ensaio, com tiragens de 1500 exemplares. Era suposto que a editora tivesse começado em Junho passado, a esse ritmo, publicando 12 livros até Dezembro, mas por causa da pandemia de covid-19 o arranque foi adiado para Agosto, o que fez com que a concentração de lançamentos fosse maior. Para 2021, o objectivo é publicar ao ritmo inicialmente planeado. “Sendo que planos é algo de que não gosto muito; se me apetecer publicar mais, publicarei. Se quiser publicar menos, assim farei. E se me cansar, deixo de publicar”, explica Ricardo Costa. “O único compromisso é o bem-estar. A provocação já foi feita com o lançamento da Bazarov. Já li muitas coisas sobre a editora, umas com sentido e outras sem sentido nenhum. Agora tem de ser um exercício de prazer meu.”

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Os livros estão à venda em livrarias independentes, e também já estão disponíveis na Almedina e, desde a semana passada, nas lojas Fnac, que os têm em destaque com as suas capas distintas, a preto e branco. Embora em tempo de pandemia, confirma Ricardo Costa, o cenário seja dramático, com as encomendas curtíssimas e à consignação. “Quando os livros são vendidos é muito difícil receber o dinheiro, temos de andar atrás das pessoas. O que é uma pena, porque a Bazarov nasceu também com a premissa de pagar a tradutores, revisores e paginadores acima da média e a horas. Pagamos ao dia da entrega, era um compromisso de honra e continuamos a fazê-lo”, assegura o editor, que se formou em jornalismo na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e passou pelo grupo Porto Editora (na assessoria de imprensa) antes de ir para Londres trabalhar como agente de serviço ao cliente. Nasceram oportunidades de negócio, que aproveitou investindo (umas correram bem, outras mal) e actualmente faz “investimentos em empresas das mais diferentes áreas, desde o marketing ao imobiliário.” Como viaja muito por causa do trabalho, tem tempo para ler.

A “quem tiver interesse na nova literatura, nas novas vozes que estão a surgir e poderão ficar por aí muito, muito tempo”, Ricardo Costa recomenda, por exemplo, Censo, do norte-americano Jesse Ball, Deserto Sonoro, da mexicana Valeria Luiselli, ou ainda Rio, da alemã Esther Kinsky. “Quem quiser uma literatura mais arrojada, mais irónica talvez, pode ler Os Fantasmas, do argentino César Aira. Quem quiser pensar um bocadinho sobre as coisas óbvias que estão à nossa volta pode ler ensaios como A Lua, do alemão Joachim Kalka, ou Uma História Natural do Vento, do australiano Lyall Watson. Quem quiser ser arrebatado pelas possibilidades ilimitadas da literatura pode escolher Uma Coisa Elementar, do norte-americano Eliot Weinberger. E quem quiser ler o que de melhor se escreveu sobre desporto, ténis em particular, pode ler Teoria das Cordas, de David Foster Wallace. Quem quiser saber de onde nasce o ensaio, pode ler o primeiro livro dedicado ao tema que publicámos, Ensaísmo, do irlandês Brian Dillon”, aconselha ainda o editor. Mas no catálogo da Bazarov estão também o russo Vladimir Sorokin (A Tempestade), o australiano Gerald Murnane (As Planícies) e o espanhol Paul B. Preciado (Um Apartamento em Urano).

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Entre as novidades que a Bazarov (www.bazarov.pt) vai publicar no primeiro semestre de 2021 estão Robert Walser (As Redacções de Fritz Kocher e Outras Histórias) e Robert Musil (com um livro de ensaios inédito em Portugal), dois autores que o editor queria muito editar porque, diz, são parte das suas referências, educação e formação. Mas também o volume Ensaios Completos, de Lydia Davis, e o livro muito premiado de Fernanda Melchor, Temporada de Furacões, além de obras de David Markson e Paolo Zellini.

Ricardo Costa, que no nome da editora faz uma homenagem à personagem do romance Pais e Filhos, do russo Ivan Turguéniev (Relógio D’Água), segue na editora alguns mandamentos: os seus livros são impressos em papel, não têm bonecos, são literatura “dura, que vai ao osso”, com linguagem pouco romantizada e directa. “Não quero que a editora seja um espelho daquilo que eu sou, mas que seja uma boa caricatura daquilo que sou para o meu filho. Um dia, quando ele puder ler os livros da Bazarov, vai saber do que o pai gostava. Esta é uma das pequenas coisas que lhe posso deixar.” Quis que os livros não tivessem desenhos, imagens ou cor até. “Queria que fossem [objectos] simples, onde a única coisa que interessasse fosse o texto, a palavra. Se queremos ver uma imagem bonita, vamos ao museu. Se queremos ler um livro não precisamos de imagens bonitas. Sempre quis que a Bazarov fosse um projecto sóbrio onde o texto fosse o protagonista.” Essa ideia foi passada ao britânico Andrew Howard, cujo estúdio no Porto assumiu a imagem da também portuense editora Ahab em 2009, e é agora responsável pelo design minimalista da editora — capas, paginação do miolo, logótipos.

PÚBLICO -

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Ricardo Costa, editor da Bazarov PAULO PIMENTA

Os livros de capas brancas são de ensaio, os livros de capas pretas de ficção. Uma ideia que nasceu daquilo que faz a editora londrina Fitzcarraldo Editions com o azul. “Os livros de ensaio são brancos porque não têm mentira, os livros de ficção são pretos porque contêm mentira, pecado. Essa é a justificação que dei a mim próprio, apesar de não fazer sentido algum”, conta Ricardo Costa a rir-se.

A sua primeira ideia foi comprar uma editora que estivesse em dificuldades, mas as abordagens que fez não resultaram. Ao criar a Bazarov, não vivendo em Portugal e não sendo editor, nem conhecendo tradutores, precisava de alguém que o ajudasse. Por isso a coordenação editorial é assumida pela Caixa Alta, dos editores e tradutores Guilherme Pires (ex-editor da Elsinore, da 20/20 Editora) e Madalena Caramona. “Eu defino o que quero publicar e o Guilherme encontra os tradutores e revisores e coordena o trabalho destas pessoas. Quando o livro está pronto, vai para a gráfica, vem até mim. No fundo eu não sou mais do que um leitor aqui. Escolho os livros que quero publicar e contrato os direitos.”

 


Sumário relatório da aula 7 (11/10)

0. Como estamos de programa?

Sem darmos conta já abordámos mais de metade das entradas do programa. Até porque a maioria dos títulos são autoexplicativos. Um dos mais misteriosos é o 6.3.- o contrato do desenhador. 

Sublinhar mais uma vez a frase: «Horácio, há mais coisas no céu e na terra que em toda a tua filosofia.»

O caso do juiz que quer dar boa imagem mas dá má imagem. Há uns anos houve um político assim: pedia rigor mas, por lapso, esqueceu-se de pagar à Segurança Social durante cinco anos. Um juiz que põe na mesma frase - e logo a inicial - as expressões «alarido» e «violência doméstica»? Má jogada. Se fôssemos seu editor não comentaríamos a forma da forma (a sintaxe) mas a forma do conteúdo. 

Além disso, o excesso de combatividade seria benéfico noutro tipo de imnterveniente - eu pelo menos não aprecio nos juízes a paixão que obnubila, tampouco o tique marialva.   


3. Uma arte poética na cabeça

O caso de António Aleixo, poeta popular, cauteleiro de profissão, cujas quadras eram buriladas na cabeça de forma perfeita. Fizemos em aula alguns exercícios - que podem servir para, em dupla, os estudantes treinarem - onde foram introduzidas algumas asneiras nos versos. O exercício é parecido com o de Camilo Pessanha: não haverá versos trocados?

Aqui há também metros trocados. 



Exercício: 

Só mudando a pontuação, escreva de dez maneiras diferentes (pronto, pelo menos de cinco) a seguinte frase: 


Uma atividade comercial ou cultural? Ambas.

Raquel Paixão

Uma das questões do programa que me interessam aprofundar mais no trabalho final da cadeira debruça-se precisamente no papel do editor. Com este pequeno excerto, estou eu desde já a refletir sobre a questão 2.3 do ponto 2.

É de notar que não tenho qualquer experiência profissional (ainda) no campo da edição. Neste sentido, é para mim interessante tentar entender como é desempenhar o papel do editor, tendo em conta a natureza do livro e a sua história.

O livro é um objeto cultural e intelectual, que contém em si próprio conhecimento e infinito número de expressões. Dentro de cada livro existe um mundo, uma realidade alternativa onde podemos embarcar numa viagem que tanto nos pode enriquecer como desiludir. Aqui, o autor tem a tarefa de criar o texto que, mais tarde, será “esculpido” pelo editor até se transformar no produto final: o livro.

O livro é também um bem de consumo. Sendo um bem cultural e de comércio, a venda de livros consiste em atribuir reconhecimento a essa obra e, simultaneamente, ganhar dinheiro. Aqui entram as editoras, e mais especificamente o editor, cujo papel é tornar o livro num bem comerciável. Neste sentido, entende-se que o mundo editorial se cruze com as variadas indústrias socioculturais. O editor é um mediador cultural, é uma ponte entre o texto do autor e o público que o vai receber. O editor ao selecionar um texto do autor, por qualquer razão que seja, espera que o produto final - o livro - vá ser reconhecido como um bem cultural e um produto cujas vendas sejam suficientes para sustentar gerar lucro financeiro.

É necessário, portanto, que haja aqui um balanço entre o trabalho original do autor e um produto final que satisfaça as expetativas do mercado. O editor tem a responsabilidade de tentar alcançar este balanço através do processo de edição e todas as suas etapas, desde selecionar e aprimorar o texto até à sua divulgação e venda. Assim, será possível (ou pelo menos expectável) existir uma harmonia entre a relação autor/leitor, onde o editor é o mediador.

Com isto, penso que a atividade editorial se enquadra tanto na esfera cultural como comercial: aliás, seria muito difícil nos dias de hoje manter viva a indústria da edição se editar não fosse ambas.

Guia de sinais de revisão

Mesmo com o semestre já findado, deixo aqui  este guia bastante completo dos sinais usados na revisão de texto. O  site  Revisão para quê t...