quinta-feira, 19 de novembro de 2020

5. O Caso da Ameaça Eletrónica

Manuel Afonso


As Prateleiras do Confinamento

Durante o Grande Confinamento as ruas ficaram vazias. Grande parte da população mundial foi remetida aos seus domicílios. A vida pública entrou pela doméstica adentro, mediada pela tecnologia. Zooms, WhatsApps, Instagrams, Facebooks e outras redes são há muito uma nova esfera pública. Com a meia humanidade remetida ao lar (a parte da humanidade o que tem) estes mediadores telemáticos tornaram-se a única esfera pública possível enquanto engoliam a privada.

Na era pós-Gutenberg, essa função tem sido a dos livros. Dos livros em papel, pois claro. A revolução Gutenberguiana foi essencial à construção da esfera pública, da sociedade civil, como a conhecemos. Apesar de pública, esta nunca ficou à porta do domicilio. Com a alfabetização crescente, progressivamente, estas unidades contentoras de sociedade entraram casas a dentro. Bíblias, enciclopédias, Readers Digests, Manifestos Comunistas e, claro, romances, fizeram civilização nas estantes de casinhotos e palacetes.

Seria de esperar que as novas mediações cibernéticas remetessem o livro em papel para o bidão de reciclagem da história. Mas não.

Durante o Grande Confinamento as ruas ficaram vazias e as estantes, recheadas de sucessões de lombadas, reconquistaram valor. Conferencistas e comentadores televisivos, arredados para o cenário doméstico, exibiam prateleiras livrescas, alegando um pretenso conhecimento que regularmente contrastava com a aridez dos seus comentários. Paradoxalmente, o livro em papel ganhou um novo valor graças à exigência telemática do Grande Confinamento. Não sabemos se foi valorizado como objecto de leitura. Mas tornou-se essencial como cenário de tele-declarações pomposas, de lives de Facebook ou em reuniões de gente séria via Zoom.

Nas estantes dos ecrãs, nenhum serviço da Vista Alegre, nenhuma nossa Senhora de Fátima florescente nem sequer uma foto emoldurada sobre um napron amarelecido: livros, livros e mais livros.

Em tempos em que o empreendedorismo é o mais sacro dos valores, terá havido quem aproveitasse para alugar estantes previamente enlivradas a comentadores despreparados? Ou existiriam já nas prateleiras deste país arsenais livrescos escondidos, que rivalizam com os de metralhadoras armazenadas em garagens trumpistas, América dentro?


Redes, Capas e Miolos

Diriam os cépticos – e talvez os cínicos – que esta inesperada valorização do livro é tão estreita como as lombadas feitas bites. Dirão que o livro em papel foi apenas despromovido a bibelot – e não virá bibelot de biblos1? Alguns neurónios mais contorcidos desconfiarão que não há miolo dentro das lombadas enfaixadas nas prateleiras-zoom...

Porém, para pasmo dos biblio-cépitcos, se formos mais fundo nas redes pescaremos mais provas da resiliência do Livro.

Não foi só emprateleirado e fechado que o Livro se revalorizou durante o encerramento global. Mais uma vez, as novas mediações cibernéticas ajudaram a dar um novo palco ao seu predecessor. Desta feita, foi o Desafio dos Dez Livros, que viralizou no Facebook, a cumprir esse efeito.

O desafio era simples e muitos se deixaram t(r)agar por ele: durante dez dias, publicar dez capas de livros marcantes e, a cada um deles, desafiar um amigo para fazer o mesmo. Dez capas, dez amigos, dez dias, milhões de livros.

Leitores e leitoras pelo mundo, fechados nas suas casas, recomendaram leituras à rede. Exibiram capas físicas transmutadas em megabites e desafiaram os seus pares a fazer o mesmo. Zeros e uns uniram-se no universo zuquerberguiano para dar vida a correntes de leitura que se sucederam sem fim.

Descobrimos que a vizinha lê Eça, que o primo é louco por filosofia grega, que houve uma geração marcada pelos Filhos da Droga e que ninguém recomenda o José Rodrigues dos Santos, por mais que este venda.

Descobrimos ainda que, mesmo nas redes, ninguém partilha links para ebooks quando recomenda livros. Nem nos remete para a cloud, prateleira de PDF's. O Desafio dos Dez Livros foi feito de capas, postadas no mural, que se sucediam no scroll. JPEG's e PNG's de capas fotografadas em cima do joelho – muitas vezes literalmente – responderam à pergunta orweliana: “Em que é que estás a pensar”?

Decididamente a distopia em que estamos confinados não é o Fahrenheit 451. O Livro em papel reapareceu no digital - o futuro é já hoje e o passado ainda não se foi.


Índices e indícios

E o que é que isto interessa?

Pouco ou nada. Ou talvez alguma coisa. Porque o que se passa nas redes não só tem reflexo no mundo real. É mesmo parte do mundo real. Pelo que tenho cá para mim que, se não cairmos no erro do excesso de entusiasmo, alguma coisa de bom podemos tirar daqui.

Comecemos pela parte do comedimento. O mercado livreiro está cheio de tubarões, é complicado e aldrabado – é mercado. Neste mundo em que o lucro está acima da vida, a cultura está ainda mais abaixo. Sobretudo aquela que exige tempo e literacia para ser consumida. No nosso país em particular, os apoios são poucos, os hábitos de leitura menores ainda e a monocultura é a regra – do eucalipto à edição. Juntemos-lhe a maior crise dos últimos 70 anos.

Já ninguém conta com boas notícias, certo?

Agora que as expectativas estão baixas, podemos surpreender-nos pela positiva. Dizem-nos estudos recentes que, apesar de um tombo grande, o mercado livreiro está a recuperar mais rapidamente que outros. Há razões para isso e podem não ser só nova utilidade “estantânea” das lombadas ou o Desafio dos Dez Livros. Talvez estes sejam até mais efeitos que causas.

É natural que presos em casa leiamos mais. E que o encerramento de Teatros e Cinemas abra livros empoeirados. Para não falar dos viajantes, que tiveram de se remeter a um Melville, a um Kerouac ou a um Sepúlveda, cujas fronteiras nunca fecham. Podemos estabelecer um paralelo com o “índice do batom”. Segundo este, nos momentos de crise em que o consumo de luxo diminui, o público feminino refugia-se em cosméticos baratos, cuja procura aumenta (o machismo subjacente ao conceito diz-nos que foi certamente um homem que o cunhou). Apesar de tudo, há indícios que, num mundo em crise, o objecto livro revele vantagens competitivas.

Afinal, o princípio darwiniano não é a sobrevivência do mais forte mas do mais adaptado: e quem melhor que os livros para se adaptar a um mundo entre quatro paredes? Gutenberg sempre rima com Zuckerberg.






1Não não vem: https://fr.wiktionary.org/wiki/bibelot#%C3%89tymologie. Mas nada nos impede de martelar poeticamente a etimologia!

2 comentários:

  1. Olá, Manuel
    Apenas umas breves linhas:
    - a obsessão pela procura de respostas sobre o desenrolar da pandemia fez disparar vendas de obras como a Peste de Camus (e que a Livros do Brasil tão bem tratou), e a publicação massiva de ensaios, crónicas e diários acerca do pós-pandemia desde Zizek a Cuenca ou Bifo Berardi.
    - Ao contrário da imprensa, vivendo da actualidade, parece-me que a pirataria do livro é menos sedutora para os leitores. O valor do livro como objecto percebe-se incalculável, não achas?

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  2. Obrigado pelos comentários. Incalculável sim, sem dúvida. Já sem preço não, infelizmente. Quem não prefere ler um bom livro online do que não o ler de todo? Mas sim, estamos de acordo.

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