domingo, 22 de novembro de 2020

2. A natureza da edição (2.3. Uma atividade comercial ou cultural?)

 

Apesar de ter sido extensamente discutido em aula, é importante trazer para a discussão que a natureza da edição também pode ser de caráter interventivo. Entre a dimensão comercial e cultural, existe ainda um aspeto que se encontra presente para além destas duas realidades. Uma editora pode publicar um livro por vários motivos. Quer seja pela previsão do sucesso da edição num determinado mercado, quer pela introdução de um(a) autor(a) numa língua onde ainda não a/o conheçam, há sempre espaço para textos desconhecidos por mais distantes que possam estar.

Todas as palavras podem ser publicadas desde que haja interesse editorial em revelar outras vozes. Partindo de uma hipótese não conhecida ou formulada numa língua, torna-se assim possível ler sobre teorias que não faziam parte do léxico de um idioma. A oferta de nomes ainda não conhecidos num determinado local, permite-nos disponibilizar um conjunto de ideias/textos já disseminados noutras partes do mundo. Numa era cada vez mais pautada pela comunicação digital, assente numa lógica hiper-real, onde os leitores estão constantemente entre o espaço físico e o virtual, é crucial garantir não só a introdução de autores desconhecidos, como também a sua apresentação a uma comunidade de leitores que por razões várias não tinham acesso aos seus textos.

Veja-se o caso de um autor que poderá ser desconhecido no Brasil por escrever em francês, mas que recentemente entrou no circuito literário pelas mãos da editora n-1 edições, cujo catálogo conta já com duas obras traduzidas para o português brasileiro. Para os falantes desta variante linguística torna-se assim possível aceder aos textos de Achille Mbembe, cuja língua de trabalho é o francês. Um outro exemplo interessante é a tradução do livro O Calibã e a Bruxa de Silvia Federici. A editora Orfeu Negro publicou recentemente a obra para o português europeu, permitindo que passasse a estar também disponível numa outra língua que não o inglês. Para os leitores que falam português nas suas múltiplas variantes, é valioso poder contar com tais edições na sua língua materna.

Os dois exemplos anteriormente referidos levam-nos ao início deste apontamento. Existe um caráter interventivo, mesmo que seja subconsciente, quando um livro é divulgado numa língua onde outrora não havia qualquer registo. Para além dos fatores comerciais e culturais tal como o impacto da publicação numa determinada área geográfica ou a receção do livro por parte um público-alvo, uma obra acabará sempre por ressoar em qualquer comunidade linguística que se reveja em tais palavras, independentemente do texto de partida. A intertextualidade funciona como uma substância agregadora que permite-nos elaborar novos textos a partir de outros, aproximando as múltiplas comunidades onde a língua é, por vezes, uma barreira que nos separa.


Miguel A. Baptista


Fontes:

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/03/intelectual-busca-oferecer-visao-afrocentrica-da-modernidade.shtml

https://www.publico.pt/2020/10/07/culturaipsilon/noticia/ponto-vista-mulheres-bandeira-democratica-capitalismo-mentira-1934181

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