quinta-feira, 22 de abril de 2021

Conto sobre um Poema de Bashô por base

 

            “olhando a imagem de um homem bebendo sozinho

 

                        bebendo saké

                        sem flores nem lua –

                        estou só”[1]

 

            Bashô foi um poeta e, como todos os poetas, gostava de estar só. Foi um poeta etéreo e do quotidiano, capaz de ver numa folha caída a infinita perfeição do universo.

            Mas, como todos os poetas, o que o atraía mais era a vida de poeta, e daí o grande tomo em português denominado “O Eremita Viajante” ser um livro com um título perfeito. Bashô gostava de caminhar, sozinho ou acompanhado, sem destino muitas vezes.

            Triste, solitário e cheio de subtilezas os seus poemas transpiram a passagem do tempo e do regresso sempre igual das estações.

            Bashô conheceu uma mulher pela qual se apaixonou. Chamava-se Aziul. Bashô, pobre e meditabundo, nada lhe podia oferecer senão trabalho e cansaço. Por timidez conteve a sua paixão só para si. Não foi nenhum desejo de grandeza, foi um gesto de quem está habituado à solidão e ao que a faz passar minimizando a dor.

            Bashô por toda a sua vida cultivou este amor secreto que aliás nunca tentaria concretizar. Bebia saké, como na imagem de um homem bebendo sozinho, que deu origem ao seu haiku. Comia arroz, mas era frugal. Pouco comia e bebia pouco também, embora a doce bebida destilada de arroz com álcool lhe hipnotizasse os sentidos. Viveu assim até morrer, e em toda a sua vida, de forma a poupar o sofrimento dos outros que o conheciam.

            Bashô não foi um artista de variedades, mas sim de um arte só: a de escrever haikus. E no seio desta arte talvez tenha sido o poeta maior de todos os tempos. Mas foi infeliz como homem. E porquê? Porque amava Aziul.

            Até no seu sofrimento Bashô foi igual a muitos outros poetas. Não só a solidão pungente, a pobreza que dele fazia um escravo de outros senhores, mas também o amor que nunca se realizou com a suma amada Aziul.

            Aziul era de média altura, tinha um sorriso branco perfeito, um cabelo castanho macio e grosso, uns lábios rosados pequenos e plenos de promessas.

            As promessas dos lábios de Aziul nunca ele Bashô ouviria. Teria chorado se não fosse um homem de um tempo em que os homens não choravam. Matavam, comiam e riam. Bebiam também. E isso era assim como no dia de hoje um desses homens facilmente testasse positivo num teste de psicopatia. Naqueles tempos era o ideal de virilidade.

            Os sonhos de Bashô eram preenchidos por haikus e Aziul. Mesmo que só por leveza (própria de um poeta) as flores, as folhas, o ar, o fogo, a terra, tudo nele era observado e registado poeticamente a partir desse grande amor que tinha por Aziul.

            Aziul era extremamente bela, pesar a sua pobreza. Nunca tivera uma educação para ser mulher, e o pó de arroz de Geisha não lhe assentava bem. Tinha uma beleza natural, era simétrica de feições e de membros. Só sabia trabalhar – que fora o seu único ofício, nos campos de arroz. E de arroz não percebia dos pós, só da semeia e da colheita.

            Mesmo assim a condição de Bashô era funesta. Não era tão pobre como o trabalhador dos campos mais pobre ainda, mas era um poeta, e esta sua condição não lhe assegurava um concubinato mas sim uma vida de palavras no papel. Esta era a sua função numa sociedade em que as pessoas ainda tinham funções. E terão as funções de facto desaparecido?

            Curioso era o laço que unia Bashô a Aziul, mas como se percebe Aziul nunca viu esse laço. Era mais fácil assim para Bashô também e as únicas palavras que eles trocaram toda a sua vida foram saudações.

            Duro amor.

            Os próprios poemas não podiam enaltecer os sapatinhos de Aziul, ou as suas bochechas ou lábios, porque tornaria ridículo o vínculo ilusório e delirante que o unia a ela.

            Na verdade um vínculo é uma formalidade deste conto, uma forma de dar um nome ao que Bashô sentia pela simplicidade humana de Aziul.

            Habituado às complicadas maneiras aristocráticas Bashô preferiu banhos de sol ou de chuva. Caminhou para percorrer caminhos vazios, sem destino mesmo.

            A natureza da religiosidade nipónica é a da tradição do budismo Zen. Primeiro era esse o passo. O poeta não difere dos sentimentos religiosos da época. Neste caso digamos que Bashô era, como outros poetas, um poeta itinerante. Abriam-se caminhos para ele caminhar com os pés e outros com as palavras.

            Não havia caminho nenhum para Bashô amar Aziul. Desse modo viveu, até ao fim dos seus dias. Bashô era poeta, e os poetas vivem assim.

 

Bibliografia

 

            BASHÔ, Matsuo, O Eremita Viajante [haikus – obra completa], Portugal, Assírio & Alvim, 2016

            BASHÔ, Matsuo, The Narrow Road to the Deep North, UK (United Kingdom), Penguin Classics (Random House UK), 2020 edition based on 1966 translation by Nobuyuki Yuasa

            HENSHALL, Kenneth, História do Japão (translation from A History of Japan: From Stone Age to Superpower), Lisboa, Edições 70, 2011


 Nelson Manuel Alves e Silva



[1] BASHÔ, Matsuo, O Eremita Viajante [haikus – obra completa], Portugal, Assírio & Alvim, 2016, haiku 472, Pág. 170

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