Conto sobre um Poema de Bashô por base
“olhando a imagem de um homem
bebendo sozinho
bebendo saké
sem flores nem lua –
estou só”[1]
Bashô foi um poeta e, como todos os
poetas, gostava de estar só. Foi um poeta etéreo e do quotidiano, capaz de ver
numa folha caída a infinita perfeição do universo.
Mas, como todos os poetas, o que o
atraía mais era a vida de poeta, e daí o grande tomo em português denominado “O
Eremita Viajante” ser um livro com um título perfeito. Bashô gostava de
caminhar, sozinho ou acompanhado, sem destino muitas vezes.
Triste, solitário e cheio de
subtilezas os seus poemas transpiram a passagem do tempo e do regresso sempre
igual das estações.
Bashô conheceu uma mulher pela qual
se apaixonou. Chamava-se Aziul. Bashô, pobre e meditabundo, nada lhe podia
oferecer senão trabalho e cansaço. Por timidez conteve a sua paixão só para si.
Não foi nenhum desejo de grandeza, foi um gesto de quem está habituado à
solidão e ao que a faz passar minimizando a dor.
Bashô por toda a sua vida cultivou
este amor secreto que aliás nunca tentaria concretizar. Bebia saké, como na
imagem de um homem bebendo sozinho, que deu origem ao seu haiku. Comia arroz,
mas era frugal. Pouco comia e bebia pouco também, embora a doce bebida
destilada de arroz com álcool lhe hipnotizasse os sentidos. Viveu assim até
morrer, e em toda a sua vida, de forma a poupar o sofrimento dos outros que o
conheciam.
Bashô não foi um artista de
variedades, mas sim de um arte só: a de escrever haikus. E no seio desta arte
talvez tenha sido o poeta maior de todos os tempos. Mas foi infeliz como homem.
E porquê? Porque amava Aziul.
Até no seu sofrimento Bashô foi
igual a muitos outros poetas. Não só a solidão pungente, a pobreza que dele
fazia um escravo de outros senhores, mas também o amor que nunca se realizou
com a suma amada Aziul.
Aziul era de média altura, tinha um
sorriso branco perfeito, um cabelo castanho macio e grosso, uns lábios rosados
pequenos e plenos de promessas.
As promessas dos lábios de Aziul
nunca ele Bashô ouviria. Teria chorado se não fosse um homem de um tempo em que
os homens não choravam. Matavam, comiam e riam. Bebiam também. E isso era assim
como no dia de hoje um desses homens facilmente testasse positivo num teste de
psicopatia. Naqueles tempos era o ideal de virilidade.
Os sonhos de Bashô eram preenchidos
por haikus e Aziul. Mesmo que só por leveza (própria de um poeta) as flores, as
folhas, o ar, o fogo, a terra, tudo nele era observado e registado poeticamente
a partir desse grande amor que tinha por Aziul.
Aziul era extremamente bela, pesar a
sua pobreza. Nunca tivera uma educação para ser mulher, e o pó de arroz de
Geisha não lhe assentava bem. Tinha uma beleza natural, era simétrica de
feições e de membros. Só sabia trabalhar – que fora o seu único ofício, nos
campos de arroz. E de arroz não percebia dos pós, só da semeia e da colheita.
Mesmo assim a condição de Bashô era
funesta. Não era tão pobre como o trabalhador dos campos mais pobre ainda, mas
era um poeta, e esta sua condição não lhe assegurava um concubinato mas sim uma
vida de palavras no papel. Esta era a sua função numa sociedade em que as
pessoas ainda tinham funções. E terão as funções de facto desaparecido?
Curioso era o laço que unia Bashô a
Aziul, mas como se percebe Aziul nunca viu esse laço. Era mais fácil assim para
Bashô também e as únicas palavras que eles trocaram toda a sua vida foram
saudações.
Duro amor.
Os próprios poemas não podiam
enaltecer os sapatinhos de Aziul, ou as suas bochechas ou lábios, porque
tornaria ridículo o vínculo ilusório e delirante que o unia a ela.
Na verdade um vínculo é uma
formalidade deste conto, uma forma de dar um nome ao que Bashô sentia pela
simplicidade humana de Aziul.
Habituado às complicadas maneiras
aristocráticas Bashô preferiu banhos de sol ou de chuva. Caminhou para percorrer
caminhos vazios, sem destino mesmo.
A natureza da religiosidade nipónica
é a da tradição do budismo Zen. Primeiro era esse o passo. O poeta não difere
dos sentimentos religiosos da época. Neste caso digamos que Bashô era, como
outros poetas, um poeta itinerante. Abriam-se caminhos para ele caminhar com os
pés e outros com as palavras.
Não havia caminho nenhum para Bashô
amar Aziul. Desse modo viveu, até ao fim dos seus dias. Bashô era poeta, e os
poetas vivem assim.
Bibliografia
BASHÔ, Matsuo, O Eremita
Viajante [haikus – obra completa], Portugal, Assírio & Alvim, 2016
BASHÔ, Matsuo, The Narrow Road to the Deep North, UK (United Kingdom), Penguin
Classics (Random House UK), 2020 edition based on 1966 translation by Nobuyuki
Yuasa
HENSHALL, Kenneth, História do Japão (translation from A History of Japan: From Stone Age to Superpower), Lisboa, Edições
70, 2011
Nelson Manuel Alves e Silva
[1] BASHÔ, Matsuo, O Eremita Viajante [haikus – obra completa],
Portugal, Assírio & Alvim, 2016, haiku 472, Pág. 170
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