Francisco Rúbio
A invisibilidade de um processo fundamental, a edição. Será que perdemos sequer um minuto a pensar no significado dos sapatos que escolhemos? O processo, não tangível, de acumulação de bagagem cultural e de toda a experiência resulta nessa escolha efémera do uniforme que produz certas expectativas no estranho que nos observa e avalia, tal como o leitor que fita, num relance, a capa do livro. O estranho faz, depois, a sua leitura - a superficial e, posteriormente, a profunda - e interpreta com base naquilo que também viveu, leu ou escutou até aí.
A escolha do leitor não é determinada pela questão: quem é o editor deste livro? Mas pela dúvida: Qual o autor deste livro?
Esta dúvida esconde o jogo invísivel de rasura e de influência que o editor sobrepõe no livro, como forma de o melhorar/adulterar, como Lish fez ao se apoderar das palavras, do estilo e do ritmo de escrita de Raymond Carver. Raymond Carver tinha cabelo, mas não de poeta. Escrevia pequenos contos e depois eles tornavam-se mais pequenos. Uma espécie de censura sucedia pela mão de Gordon Lish, seu editor. Este cancelava certos pensamentos do autor, porque seriam menos atractivos para o leitor e tornariam o livro pouco sedutor. A cancel culture anda por aí.
Onde se encontra a linha possível para agradar estes dois senhores - o editor e o autor? No resultado que vemos nas estantes das livrarias, dos alfarrabistas, dos hipermercados ou das bombas de gasolina. O produto final concretizado - esse mesmo, o livro - que continua ainda sem concluir quem teve maior influência no seu parto.
Interrompo o texto e vou confirmar. Confirma-se. Já tinha encontrado esta ideia nalgum sítio. Será que os produtores da série Netflix, “Coisa Mais Linda”, imaginariam ter leitores de Rubem Fonseca como espectadores? Se soubessem destrinçar entre público-alvo e público-real talvez não tivessem reproduzido cenas “sobre uma revista feminina onde todos os jornalistas são homens fingindo que são mulheres e onde depois descobrimos que os leitores também são todos homens e os que escrevem para o correio sentimental também são homens, embora (tal como os jornalistas) assinem como mulheres”. Ou talvez o fizessem na mesma, pois o hipertexto ajuda a ligar a vida de todos os autores.
Tropeço em pequeno contos no site da editora Bazarov, alongo o tempo de ecrã durante mais uns largos minutos, e perco-me tal como “O socialista”, que pode ser “O burro de Al-Anba” e que insiste em curar a “Perturbação e Possível” encantamento com a nossa língua portuguesa. Analiso capas escuras, sóbrias e palavras certeiras para vender uma tal postura literária blasé. Despreocupada mas preocupando-se em esconder preços, descontos e campanhas.
A endogamia presente na área das ciências humanas permite-me “perder” mais tempo em pesquisas e descobertas. O pai de Rui Miguel Tovar, a mãe de Miguel Sousa Tavares, o pai de João Tordo ou a mãe de Salvador Martinha. Até encontro quem é o primo e o padrinho de casamento de um deputado português que costuma vestir a capa de justiceiro. Irrito-me e volto aos livros.
Pode um livro ser considerado um bem essencial? Para quê mencionar o valor estético, a possibilidade de acesso a horas de informação, conhecimento e pensamento, o poder escrever melhor, os momentos de discussão social que proporciona, o emprestadar aos amigos.
Haverá melhor herança para as próximas gerações familiares?
Um dogma que nem merece resposta, nesta altura da minha vida, pois exceptuando a renda de casa, os livros são o outro item principal do meu orçamento mensal. Se necessário for, um dia, começo a comer folhas de papel, tal qual o não vizinho do professor, Miguel Guilherme.
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