quinta-feira, 4 de março de 2021

Sumário da aula 4 (3/3) - A tradução

 1. Dedicámos uma boa parte da aula à tradução de Carver. Tentámos, pela prática, chegar a algumas conclusões. 

1.1. As traduções têm todas diferenças, e isso é inevitável. A nossa língua permite traduzir qualquer frase de várias maneiras, e a nossa idiossincrasia (o sinátrico my way) faz com que escolhamos umas palavras em vez de outras. Se na tradução técnica o profissional se habitua a usar expressões feitas (com o tempo e o uso, vai sendo criada uma «tradição» nas regras de uso de telemóveis, por exemplo), na tradução de textos mais livres a coisa pia mais fino. 

1.2. Há instrumentos que devemos ter sempre perto - um ou mais dicionários (papel e, se online, sugiro despender algum dinheiro para ter qualidade profissional), acesso a sítios como o Ciberdúvidas (fiável porque ligado a uma instituição), uma boa gramática, um prontuário ortográfico. 

1.3. Outros são-nos pedidos pelo texto concreto. A qualidade exigida é a flexibilidade, a mesma que nos faz procurar várias soluções. Se o autor está vivo, podemos/devemos falar com ele. (Bem, alguns não nos ligam pevide, mas são raros.) Se o autor está morto, talvez haja documentos a consultar. No caso de Carver e Bukovski, há material q.b. no youtube (ver ponto 3, abaixo) . E que tal espreitar as traduções para outras línguas? (Caso: um tradutor tinha um problema com uma palavra que, no original, era banal, mas em português fica complicada: «Choupo-do-Canadá». Acabou por optar pelo que estava na versão francesa, «peuplier», e pôs apenas choupo. Obviamente, se o texto fosse sobre árvores teria de ser rigoroso - mas como era um elemento só numa frase optou, bem, por não cortar o ritmo.) Ter um Dicionário Ambulante - um nativo para nos guiar pela floresta de sentidos - é sempre útil. 

1.3.1. No caso do verso mais controverso e problemático neste poema de Carver, pedi à minha amiga Astri Gosh (tradutora do norueguês para o hindi, e trilingue por nascimento, pois o inglês também é uma língua oficial na Índia, a única que permite comunicação entre as nações do enorme subcontinente) para ver se me ajudava a entender. 

1.3.1.1. E ela saiu com uma solução que não tenho 100% certeza de ser a certa (não há cem-por-centos nesta nossa área) mas me parece plausível e faz sentido: The one I buried, a que enterrei, a que me morreu, a que se me foi, etc. 


 

1.3.1.12. Pude pedir-lhe isto por três razões: a) é minha amiga de há quarenta anos, conhecemo-nos a pintar a jaula do tigre no Zoo de Praga, b) há dias ela pediu-me (e eu aceitei) para dar por Zoom um workshop em Goa sobre escrita para crianças. É uma permuta informal e que, entre gente honesta, não é corrupção nem cunha, é networking, trabalho-em-rede.   

1.3.2. Temos de tentar escutar quem fala. Hoje há um desagradável hábito de entrar na casa alheia com botas enlameadas. Sempre houve ignorantes, mas hoje sentem-se mais seguros. Um engenheiro diz, petulante, que «Saramago não sabe escrever» - em contrapartida, eu não me atrevo a dizer que Einstein é um idiota. As artes sempre tiveram as portas abertas, mas a petulância imberbe e bárbara de quem acha que o seu gosto é a verdade leva a desaires como os da invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro ou de Alcochete há três anos - em comum, todos estavam certos de ter razão. O lado mau de uma coisa boa como as classificações por qualquer leitor em sítios como o GoodReads leva a que a pontuação de Camões baixe porque um moço de catorze anos acha aquilo «uma seca». Ora o gosto também se trabalha. Mas é e dá trabalho. Não temos todos de ter o mesmo gosto, mas o princípio de entrar no texto com um instrumento chamado disponibilidade intelectual é uma das ferramentas mais necessárias. E é mesmo uma ferramenta: muitas das ferramentas para trabalhar nesta área estão na nossa cabeça. E, se quiserem, também no nosso coração e no estômago. 

1.3.3. Este poema é relativamente fácil de entender, porque é uma pessoa com voz distinta a falar, mas tem uma pequena dificuldade: como os bêbedos ou os rabugentos, ele vai mudando de tom, de estado de espírito. Não está a seguir uma linha direita e monótona, está a gabar-se, a ralhar, a prometer, a dar lições, a avisar, a ficar triste, soturno, melancólico, a ficar de novo vivaz. Daí, termos puxado como exemplo o FMI de José Mário Branco. 

1.4. Traduzir é ler, é editar, é pensar. Que alternativas posso ter ao traduzir Pet Shop Boys? Devo ser fiel ao conteúdo (a «rapariga megera» do Nelson) ou devo ser fiel à forma (a «mina» do Daniel)?  E Bukovski está a falar com vocè, tu, vós ou vocês? Homens ou mulheres? Pela linguagem, cheira-me que os interlocutores nesta ficção sejam sobretudo homens. E, lendo o poema, confirmamos que «vocês», com a conotação vagamente truculenta em Portugal em vez da conotação chique de Cascais ou trivial no Brasil, parece-me a boa decisão. Porque boas decisões temos de tomar. O facto de ser discutível não deve ser impedimento a que, com os constrangimentos de prazos e dinheiro, tentemos a perfeição. Por isso, recentemente, o editor Francisco Vale, da Relógio d'Água, deu os livros da Nobel 2020 Louise Glück a traduzir por tradutoras/poetas respeitadas. Aliás, têm o nome na capa, sinal de prestígio mas também de responsabilização.    

1.5. E estamos em permanente formação. O episódio caseiro contado no fim da aula, com Ossip Mandelstam, que primeiro confundi com Stig Dagerman e depois fui verificar e me lembrei que há muito tinha lido um ou outro poema, e aproveitei para (usando o telemóvel na cama) ir buscar poemas na net, e depois no Kindle e, por ser barato, descarregar um que até tem uma epígrafe de Brodsky (prémio Nobel 1987) a falar dos quatro pilares da poesia russa no século XX, correspondentes aos quatro humores, é exemplo da disponibilidade e humildade e curiosidade que tento ter e que exige treino até se tornar natural mas que, acho, creio, suponho, nos melhora a qualidade de vida. Amén. 



2. Exercícios

2.1. Um exercício simples mas útil que alguns já conhecem. Pontue o seguinte trecho: 

«(…) na América surgiu logo a polémica pode rir-se com isto mas claro que sim deve-se até é a atitude cívica mais apropriada o complemento da resposta política e militar que os países devem ter para arrasar o Estado Islâmico lá onde falham as armas dos exércitos e as ideias dos políticos ao menos que ataquem os humoristas»

2.2. Sugestóes para a próxima aula: 

2.2.1. Gravar a leitura de um poema que vos seja querido

2.2.2. Fazer, com as regras indicadas (não são obrigatórias, mas ajudam a formatar) um conto infantil - já com os esboços dos desenhos, se possível. Ajudam o profissional que for ilustrar a entender melhor o que querem. Podem fazer em esboço ou ser mais ambiciosos. 


3. As ligaçóes desta aula

A ligação ao Livro de Estilo do Público. 

A que pensei ter dado para a conferência de hoje sobre o Papel e o Digital (será mais tarde posta online). E hoje (quinta 4) já há um resumo disponível, o que é notável.

Charles Bukowski. Aqui

José Mário Branco, FMI. 

Inglorious Bestards. Aqui


4. Do sucesso (nano-ensaio)

 Há um admirável mundo novo por aí. Não é o meu, será talvez o de alguns de vós. Há muitos anos, salvo erro em 1998, sentei-me em Frankfurt à mesa - num jantar para o qual fui convidadopor uma amiga - ao lado de uma jovem checa que ganhara um prémio (uma ida à Feira de Frankfurt, precisamente) para jovens promissores no mundo da edição. Perguntei-lhe o que queria fazer e ela respondeu, contente: «Quero editar livros de gastronomia.» Fiquei abalado, porque naquele tempo eu pensava que a área mais nobre da edição era a literatura. E surpreendeu-me que alguém tão jovem fosse já tão pragmático e claramente sobrepusesse os Altos Valores Espirituais à ambição clara de ganhar dinheiro

Eu estava errado, ela estava certa. Nos anos seguintes, os livros de gastronomia disparariam, ao ponto de na montra de uma livraria de Hong Kong (estou a pavonear as penas, eu sei, ó pra mim tão viajado) só encontrar livros de gastronomia, quase todos de anglo-saxónicos. Sempre achei graça a Jamie Oliver ensinando os italianos a comerem pizza - vá lá, ainda não nos ensinou a comer jaquinzinhos, mas lá chegará um Chef Ramsay, um Anthony Bourdain, uma Nigella qualquer que o faça. 

(Curiosamente, este último parágrafo relaciona-se com a lição de Teoria em que Tony Montana explica ao amigo as regras da relação entre economia, poder e cultura.) 

O século XXI mudou as regras no mundo editorial, confirmando definitivamente (até ver) a língua inglesa como central e as outras todas como anãs periféricas, independentemente do número de falantes - podemos ver a analogia com o facto de - wikipediem, que não faz parte da matéria - as mulheres serem metade da humanidade mas, ainda hoje, vistas como minority

Tropecei nestes rapazes que passam para vídeo «o essencial» de livros que levariam um pedaço a ler. Para mim, é mais um passo no avanço dos bárbaros: a ascensão dos iletrados ao poder, e o dinheiro como medida única de «sucesso». Nos jornais e restantes media, vi esta mudança quando as notícias deixaram de ser sobre o prestígio do prémio e passaram a ser sobre a quantia. Isso fez com que a forma de um prémio ganhar nome passasse a ser estupidamente simples: basta o valor do prémio ser alto para logo lhe atribuirem valor.     

A mim arrepia um pouco. 


1 comentário:

  1. Li o resumo da conferência sobre o papel e o digital. Ou o texto está errado, ou o autor João Scortecci não se expressou muito bem na sua fala, pois a venda de livros digitais cresceu em 2020 no Brasil, devido à pandemia -- inclusive o portal PublishNews publicou reportagens sobre esse incremento nas vendas.

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