terça-feira, 20 de abril de 2021

Exercícios 26 e 27

 Daniel Regis



Título: Dádiva e maldição


Destaque: A única coisa que posso fazer é deitar-me na escuridão, protegido da luz e do barulho e do frio…


Gênero: Crônica


Escrevo estas palavras letra a letra na escuridão. E porquê? Porque a luz do sol dá-me enxaquecas. Sempre deu.


Ando eu não sei quantos meses à espera dessa luz que só começa na Primavera e, quando chega, como chegou este fim-de-semana, fico tão deslumbrado que me deito a perder.


Se calhar, abro de mais os olhos e deixo-me atingir pelo cortante dos raios que me furam a vista – a maldita “aura” que anuncia cada enxaqueca – e, passado um bocadinho, arrancam do meu olho direito uma dor debilitante que é como se estivesse a ser apertado num torno.


A única coisa que posso fazer é deitar-me na escuridão, protegido da luz e do barulho e do frio, esperando que o sono e os vómitos tenham pena de mim.


É assim desde os meus 11, 12 anos. Passou da minha mãe para mim e de mim para a minha filha Sara. Não há nada a fazer.


Mas a cabeça também não ajuda. Por que é que o ser humano é incapaz de ter uma doença ou uma dor sem arranjar uma maneira de conseguir sentir-se culpado por ela?


Somos ajudados pelo nosso pendor para o melodrama. Eu aqui, por exemplo, vejo-me aflito para não fazer como o frei Hermano e não me entregar todo à ideia que as dores que me causam a luz do sol são causadas pelo desejo que sinto por ela.


Sou ferido pelo que mais me atrai. É o brilho que me faz abrir os olhos que os expõe à queimadura fatal da luz.


Raios partam o talento que temos para transformar qualquer dor em castigo por um prazer qualquer que conseguimos roubar ao mundo.


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Título: O pai natal precisa melhorar, mas ninguém se importa


Destaque: Isto quer dizer que o Céu fica na Rua dos Fanqueiros ou que me aldrabaram por eu ser criança.



Tretas, tretas, tretas… a mim é que não me levam mais. Era o que faltava; ou um ou outro. É um aldrabão. Disseram-me que o pai natal descia pela chaminé e eu acendi o fogão para lhe queimar o rabo, para ele dar um grito para eu o ver, e nicles. Quem ficou com o rabo a arder fui eu, que levei bumba no toutiço por ter gasto gás. É só para ver como as coisas são. // Disseram-me que ele trazia presentes do céu e o que ele me trouxe foi uma camisola que eu vi numa montra duma loja em saldo com o preço e tudo. Isto quer dizer que o Céu fica na Rua dos Fanqueiros ou que me aldrabaram por eu ser criança, é o que eu digo. Mentem à gente mal a gente nasce e depois queixam-se de que a gente, em grande, queira ir para a política. // Outra coisa que o pai natal me deu foi um compêndio de Ciências Naturais aprovado para o primeiro ano. Ora, abóbora, que se eu fosse má até ficava a pensar que o pai natal é o meu pai. O que vale é que eu sou boa até ver. Sim, até ver que se me pregam outra partida como esta vão ver como é que eu sou por dentro, porque lá por dentro sou má como as cobras. Se julgam que eu saio à minha Mãe, enganam-se. Lá no fundo, eu saio ao meu pai, mas não quero que se saiba. Para salvar o toutiço que, se ele adivinha, isso é bumba no toutiço até mais não… // Outra malandrice que me fizeram foi darem-me um cavalinho de madeira que o meu avô comprou para levar à maternidade quando eu nasci (a pensar que eu era menino), mas o diabo do velho, quando viu a enfermeira mudar-me a fralda, meteu o cavalinho no bolso e foi a correr comprar uma roca de prata, porque nesse tempo o plástico ainda era caro, e levou o cavalinho para casa para quando viesse um menino e, como nunca veio… Porque em Paris deixaram-se de fazer coisas dessas e agora fazem outras. O tal cavalinho foi escondido numa mala muito velha — onde eu o encontrei há mais de cinco anos. Estou farta de brincar com ele sem ninguém saber. // E vai, este ano, bumba apareceu-me no sapato como se fosse um presente do pai natal. Assim não vale, abóbora. Que ou a gente é séria ou não é. Isto até faz com que se perca o respeito pela família terrestre e pela família celeste. Que o meu pai queira enganar o pai natal vendendo-lhe cavalinhos velhos e Compêndios de Liceu ainda, eu entendo, agora, que ele os compre, se calhar, pelo dobro do preço, é que não entendo. Nem à bala são estas coisas que fazem a gente perder a fé e depois espantam-se… // Outra porcaria que me fez o pai natal foi dizer ao meu pai que este ano os presentes eram fracotes por causa da crise que há no Céu, mas então, se aquilo é igual à Terra, para que é que lhe chamam Céu. Anda a gente a privar-se de coisas para ir para o Céu e chega lá e… bumba! Aquilo é como a Graça ou como o Areeiro; eu é que não vou nisso. E se as coisas não mudam para o ano, faço de conta que não sei da crise e mando uma reclamação para o deputado que me representa na assembleia e o pai natal vai ver como é que as moscas picam, para aprender a ser profissional. A valer que isto dum pai natal amador não interessa a ninguém e muito menos a esta vossa Guidinha, que não está cá por ver andar os outros.

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