Tagiane Mai
26:
Título: Autoagressão cintilante
Destaque: Temos o talento para transformar qualquer dor em castigo por um prazer qualquer.
Gênero: Crônica
27:
Título: Tretas natalinas
Destaque: Coisas do Pai Natal que fazem Guidinha perder a fé.
Tretas, tretas, tretas. //A mim é que não me levam mais – era o que faltava. Ou um ou outro é um aldrabão. //Disseram-me que o pai natal descia pela chaminé, e eu acendi o fogão para lhe queimar o rabo, para ele dar um grito, para eu o ver, e nicles. Quem ficou com o rabo a arder fui eu, que levei bumba no toutiço por ter gasto gás. É só para ver como as coisas são... //Disseram-me que ele trazia presentes do céu, e o que ele me trouxe foi uma camisola que eu vi numa montra duma loja em saldo com o preço, e tudo isto quer dizer que o Céu fica na Rua dos Fanqueiros ou que me aldrabaram por eu ser criança. É o que eu digo: mentem à gente mal a gente nasce e depois queixam-se de que a gente em grande queira ir para a política! //Outra coisa que o pai natal me deu foi um compêndio de Ciências Naturais aprovado para o primeiro ano. Ora abóbora, que se eu fosse má até ficava a pensar que o pai natal é o meu pai. O que vale é que eu sou boa, até ver, sim, até ver, que se me pregam outra partida como esta vão ver como é que eu sou por dentro, porque lá por dentro sou má como as cobras. Se julgam que eu saio à minha Mãe, enganam-se; lá no fundo, eu saio ao meu pai, mas não quero que se saiba para salvar o toutiço, que, se ele adivinha isso, é bumba no toutiço até mais não. //Outra malandrice que me fizeram foi darem-me um cavalinho de madeira que o meu avô comprou para levar à maternidade quando eu nasci (a pensar que eu era menino), mas o diabo do velho, quando viu a enfermeira mudar-me a fralda, meteu o cavalinho no bolso e foi a correr comprar uma roca de prata, porque nesse tempo o plástico ainda era caro, e levou o cavalinho para casa, para quando viesse um menino, e como nunca veio, porque em Paris deixaram-se de fazer coisas dessas e agora fazem outras, o tal cavalinho foi escondido numa mala muito velha onde eu o encontrei há mais de cinco anos. Estou farta de brincar com ele sem ninguém saber, e vai este ano... Bumba! Apareceu-me no sapato como se fosse um presente do pai natal. Assim não vale, abóbora, que ou a gente é séria ou não é. Isto até faz com que se perca o respeito pela família terrestre e pela família celeste. Que o meu pai queira enganar o pai natal vendendo-lhe cavalinhos velhos e Compêndios de Liceu ainda eu entendo. Agora, que ele os compre – se calhar pelo dobro do preço! – é que não entendo nem à bala. São estas coisas que fazem a gente perder a fé, e depois espantam-se... //Outra porcaria que me fez o pai natal foi dizer ao meu pai que este ano os presentes eram fracotes por causa da crise que há no Céu. Mas então se aquilo é igual à Terra, para que é que lhe chamam Céu? Anda a gente a privar-se de coisas para ir para o Céu e chega lá e bumba, aquilo é como a Graça ou como o Areeiro. Eu é que não vou nisso e, se as coisas não mudam para o ano, faço de conta que não sei da crise e mando uma reclamação para o deputado que me representa na assembleia, e o pai natal vai ver como é que as moscas picam, para aprender a ser profissional a valer, que isto dum pai natal amador não interessa a ninguém, e muito menos a esta vossa Guidinha que não está cá por ver andar os outros.
*Tive particular dificuldade nesse exercício, talvez pelas expressões do português lusitano que me são desconhecidas.
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