quinta-feira, 8 de outubro de 2020

A regra do jogo

Quando era criança, passava as manhãs de sábado acompanhando as aventuras de Pinky e Brain, dois ratos brancos de laboratório que faziam planos mirabolantes para dominar o mundo. Pinky era um rato magricela de dentes tortos e inteligência abaixo da média. Brain era ambicioso e tinha um crânio de proporções avantajadas para evidenciar sua altíssima capacidade intelectual. Mesmo em um universo fantasioso como este, havia regras claras a serem seguidas: os personagens nunca conseguiam superar certas barreiras físicas, o nível de compreensão do universo do Pinky jamais ultrapassava sua própria inteligência e Brain nunca conseguia, de fato, dominar o mundo. 


Anos mais tarde, estudando roteiro e escrita criativa, entendi que as regras tão bem estabelecidas em Pinky e Brain eram, na verdade, elementos de coerência interna. E lembrei da minha tranquilidade de criança durante as manhãs de sábado: eu não sabia o que aconteceria no próximo episódio, mas conhecia bem as regras do jogo para saber que não, Brain não iria realmente dominar o mundo, e sim, Pinky daria um jeito de criar confusão e estragar tudo. 


Passei a gostar do conceito de coerência interna porque, de alguma forma, me parece um jeito sólido de dizer ao mundo que ficção é coisa séria. Criar narrativas fantásticas não é sobre aglomerar ideias e deixar que qualquer coisa aconteça à trama. É sobre criar um universo tão consistente, tão fiel às suas próprias regras, que mesmo o espectador mais desatento é capaz de dizer o que pode e o que não pode esperar daquilo que está diante dele. É combater o tal do Deus ex machina, segurando-lhe gentilmente pelo braço e dizendo, Com licença, aqui nós levamos a ficção a sério. 


As demais narrativas que preencheram meu repertório artístico, literário e cinematográfico ao longo dos anos continuaram reforçando a importância textual e estética da coerência interna, assim como fizeram Pinky e Brain naquele laboratório. O agente Cooper precisou esperar 25 anos para voltar à Twin Peaks, os habitantes de Dogville dormiram a vida toda em suas marcações no chão do galpão e Harry Potter nunca pôde aparatar em Hogwarts. 


Respeitar as regras da ficção é entender que veracidade não tem a ver com as semelhanças entre criação e mundo real, mas sim com a consistência narrativa conferida ao universo que se decide criar. É acreditar tanto no poder da ficção a ponto de entender suas regras como se entende as regras da realidade. 


Flávia Farhat

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