Manuel Afonso
O Jardim da Parada é o coração de Campo de Ourique. Nas ruas ao seu redor há um tipo de comércio que já não vemos noutros lugares. Lojas de tecidos por medida, ferragens ou tricot sobrevivem num bairro cada vez mais hipster e gentrificado. No Jardim da Parada há uma Padaria Portuguesa, dois restaurantes italianos e um quiosque que vende hambúrgueres e wraps gourmet. A única esquina do Jardim que não foi conquistada pela restauração pertence, há 50 anos, à Livraria Ler.
Sobrevivem ainda em Campo de Ourique o “Eduardo dos Livros” e a “Concorrente”, ambas papelarias-livrarias, a Baobá, especializada em livros infantis, além de dois alfarrabistas. Sobre estas, a Ler tem as vantagens da longevidade, da localização e de uma oferta especializada em áreas como as Ciências Sociais ou a História.
Das montras para fora
Nascida em 1970, graças ao esforço de Luís Alves Dias, a Ler é hoje gerida pelos seus dois filhos. É uma longevidade que surpreende, em tempos difíceis para livrarias de bairro. O que a explica?
Uma visita rápida dá-nos algumas pistas para entender os 50 anos da Ler.
Antes de entrarmos no número 24 da Rua Almeida e Sousa, atentamos nas suas três montras. Na primeira, encontramos os títulos que poderiam estar num escaparate de destaques da Betrand ou Fnac. São eles romances com potencial comercial (como o inevitável Mágico de Auschwitz) ou livros de Política e História para um público não especializado, sobre Salazar, Trump ou até um de Cavaco Silva. Alternativas mais leves, nas áreas de Gastronomia e Viagens, completam a primeira vitrine.
A segunda e a terceira montras revelam-nos alguns dos fortes da Ler. Uma delas é dedicada a Literatura Infantil. Destacam-se as edições Orpheu Negro, cujas capas, de cores fortes e grafismo arrojado, atraem crianças e adultos. A última montra é dedicada à Banda Desenhada – Manga Japonesa, Novelas Gráficas norte-americanas ou clássicos da BD europeia.
Alguns pormenores revelam-nos ainda a simpatia artesanal de uma livraria de outros tempos. Os preços estão sobre as capas dos livros, escritos à mão em post-its. Uma fotocópia de uma fotografia com cães e gatos, afixada na porta, informa-nos que é permita a entrada aos visitantes de quatro patas. Tanto como os livros expostos, estes pormenores revelam-nos uma simpatia e proximidade que marcam a personalidade da Ler.
Diversidade e especialização
Entramos e vemos que, por dentro, a Ler tem forma de L – dois corredores cruzam-se em ângulo recto, com o balcão na esquina. Nas paredes, sinais de história e personalidade da livraria, saltam à vista: um diploma de “Livraria Preferida dos Portugueses” em 2013, prémio dado pela Associação Portuguesa de Editores e Livreiros; um retrato a óleo do fundador da casa; autos de apreensão de livros, relíquia das rusgas da PIDE nos primeiros anos da Ler; ou um recorte das “Regras para Viver em Campo de Ourique”, de Fernando Assis Pacheco.
O primeiro corredor confirma a vocação de livraria de bairro. No seu centro há três expositores, em linha com a primeira montra que vimos: romances com potencial de bestseller ou autores de renome, junto com edições de Política e História, centradas em temas quentes da actualidade - extrema-direita, pandemia ou aquecimento global. Em todo o redor, há estantes altas de madeira com uma ampla oferta de Literatura Infanto-Juvenil e uma secção de Banda Desenhada. Num canto, há ainda uma estante de promoções da Bizâncio, editora em que trabalha um dos actuais donos da Ler.
O balcão está coberto de edições de bolso, com destaque para a coleção da Leya. Passado o balcão, entramos no segundo corredor, com um tipo de oferta distinto. A livraria de bairro começa a diversificar-se e, em algumas estantes, mostra quais são as suas outras especialidades. Como no primeiro corredor, há expositores centrais. Um deles é ainda de Literatura, outro de História e um último de Arte e Design. Os títulos para toda a família começam a dar lugar àqueles que atraem especialistas e bibliófilos.
Vemos agora uma maior diversidade. Tal como no primeiro corredor, há secções por tema/género, dentro das quais os livros estão ordenados pelo nome do autor, por ordem alfabética. Começamos pela secção de Economia/Gestão/Marketing. Seguem-se Música, Política, Divulgação Científica, Desenvolvimento Pessoal, Puericultura/Pedagogia, Espiritualidade, Gastronomia e Viagens, Biografia/Memórias, Poesia e Linguística e Teoria da Literatura. Destacam-se, pela quantidade da oferta, as secções de Literatura Portuguesa e Lusófona, a de Literatura Estrangeira e a de Ciências Sociais. Nas vastas prateleiras de História Portuguesa e de História Estrangeira, a diversidade convive com a especialização, o que denuncia a Ler como mais do que uma livraria de bairro.
As secções de Literatura, distinguem-se não tanto pela diversidade de autores mas por terem muitas obras de cada autor. Encontramos 28 títulos de José Saramago, 21 de Pepetela, 18 de Mia Couto, 18 de Haruki Murakami, 16 de Garcia Márquez, 10 de Virgínia Woolf, 7 de Boris Vian e de Eduardo Galeano. O irritante hábito de manter apenas duas ou três obras, mais recentes ou mais vendidas, de cada autor não é regra nesta casa.
Diversidade e especialização, a par com a história, a localização e o cuidado em manter uma proximidade de bairro – na oferta, na decoração ou no atendimento – distinguem a Ler. Tem História sem ser histórica, é próxima sem ser superficial, é variada na oferta e especializada em algumas áreas. Pode assim atrair públicos diversos e fidelizar clientes, dentro e fora do bairro. Isso, e talvez o receio de muita gente em deslocar-se a centros comerciais em período de pandemia, mantiveram-na à tona neste ano difícil – como me confessou o livreiro. O Natal, que anualmente assegura o fôlego financeiro da casa, confirmará (ou não) esta tendência. A médio prazo, outros desafios se apresentam, como a aproximação em contra-relógio do término do contrato de arrendamento.
A Ler sobreviveu à PIDE e (até ver) à Covid. Mas os tempos são difíceis. A absorção do mercado livreiro pelos centros comerciais, os hipermercados e venda online perigam o futuro de livrarias como esta. A simpatia e a personalidade desta casa já madura, com um pé no comércio de bairro e outro na paixão pelos livros, explicam a sua resiliência. Bastará isso para sobreviver à nova crise, aqui ao virar da esquina?
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