5. O Caso da Ameaça Eletrónica
(5.2. Novos suportes, velhos importes)
Para a elaboração deste verbete decidi aludir a alguns projetos nacionais que pudessem estar alinhados com o ponto cinco do programa. Pensar na tecnologia enquanto ameaça à sobrevivência da escrita e da leitura é rejeitar a própria definição do tempo. Ora, se os suportes se mantivessem imutáveis desde o seu aparecimento com a escrita cuneiforme ou os hieróglifos egípcios, nunca teríamos chegado à escrita digital. Mais de 5000 anos testemunharam a evolução de uma das heranças mais valiosas da humanidade, a da escrita. É sabido que muito do que se escreve e lê hoje, é produzido através de meios eletrónicos. Muita discussão tem surgido nas últimas décadas no que diz respeito ao futuro do livro.
Será que vamos deixar os livros de vez e passar para um novo tipo de relação (inter)textual? Fará sentido pensar na morte do papel enquanto suporte e encarar o ecrã como o seu sucessor? E o que dizer sobre os novos meios de escrita e de leitura que têm acompanhado o nascimento dos ditos nativos digitais? É necessário enumerar uma resposta para cada questão, a fim de propor uma conclusão que defenda a passagem dos velhos aos novos suportes textuais, sem o fim dos primeiros.
Ao mencionar um pequeno conjunto de projetos, decidi nomear algumas propostas interessantes que não só promovem a literacia digital, como também tocam nas questões da integração social e da democratização da leitura. São quatro exemplos assaz curiosos. A Biblioteca Nacional Digital (serviço da Biblioteca Nacional de Portugal), a Bibliotrónica Portuguesa, as publicações da Fundação Calouste Gulbenkian e o Plano Nacional de Leitura na sua vertente digital, em acesso aberto. Os conteúdos são exclusivamente digitais. Todos oferecem um vasto leque de publicações que vão do documento histórico às publicações contemporâneas. A gratuitidade é, essencialmente, o aspeto agregador desta escolha. É possível perdermo-nos na vastidão dos catálogos virtuais, o que não se traduz na abdicação do livro em papel. O livro coexiste hoje em vários formatos, sem que as mais recentes inovações tecnológicas lhe retirem o seu lugar. Aliás, as bibliotecas, as escolas e outras instituições públicas continuam entre nós, mesmo que adaptadas e transformadas às necessidades dos leitores contemporâneos. Talvez possamos usufruir em simultâneo do livro impresso e do livro eletrónico.
Partindo de um artigo publicado no The New Yorker, Caleb Crain revela-nos o abandono generalizado dos livros impressos e dos hábitos de leitura pelos norte-americanos. O autor demonstra ainda como houve um declínio acentuado no tempo dedicado à leitura nos últimos anos, apresentando interessantes comentários sobre a literacia no presente. Os dados analisados indicam ainda uma verdadeira complexidade no que diz respeito aos marcadores sociais dos leitores norte-americanos. Etnicidade, género, idade ou o trabalho colocam as amostras em campos distintos. O contexto socioeconómico do leitor está intimamente relacionado com os seus hábitos de leitura.
O ecrã é hoje, sem dúvida, uma presença dominante nas nossas vidas, talvez ainda mais do que a de um livro. Seja o computador, o tablet, o telemóvel ou a televisão, rapidamente apercebemo-nos do espaço que estas tecnologias ocupam no nosso quotidiano. Em 1979, os Buggles lançam o single “Video Killed The Radio Star”, tema do álbum “The Age of Plastic”. Será também possível afirmar que o ebook matou o livro impresso? A realidade prova o contrário. São vários os utilizadores que recorrem aos livros impressos em detrimento dos eletrónicos. Não obstante, parece ainda existir uma predisposição para a leitura num suporte em papel, como o evidencia um artigo publicado no Vox acerca da disputa entre os dois suportes. Neste artigo, é interessante observar que a questão é preponderantemente económica. Os consumidores querem um preço mais acessível quanto à compra de ebooks, porém o valor destes é quase idêntico ao do livro impresso, o que também pode explicar a sua impopularidade face aos livros em papel.
Por fim, onde se encontram os nativos digitais, também conhecidos por Geração Z, na dualidade livro digital/impresso e na fórmula autor-leitor? Como é que desenvolvem hábitos de leitura entre os livros e os conteúdos digitais? E como é que esta nova realidade social molda a literacia dos novos leitores? Estes são, segundo o campo da sociologia, a geração de pessoas nascidas entre a segunda metade dos anos 1990 até o início do ano 2010. Depois, fala-se também na Geração Alfa, primeiro grupo já nascido plenamente no século XXI. Eis os futuros cibernautas que não só escrevem e leem grande parte de textos através de dispositivos eletrónicos, como também estão mais desligados dos livros em papel. Não creio que uma rutura iminente esteja por vir. O acesso a conteúdos digitais generalizou-se com a massificação da internet, mas esta não tirou o lugar dos livros em casa, nas escolas e noutros espaços onde a partilha de informação é veiculada entre pessoas. A transmissão de conteúdos/tipologias textuais será levada a cabo por múltiplos canais, materializando apenas vários (ciber)espaços, onde autores, leitores ou internautas podem aceder em qualquer ponto do planeta.
Miguel A. Baptista
Fontes
https://www.history.com/news/what-is-the-oldest-known-piece-of-literature#:~:text=As%20with%20the%20wheel%2C%20cities,a%20script%20known%20as%20cuneiform
https://www.newyorker.com/culture/cultural-comment/why-we-dont-read-revisited
https://www.vox.com/culture/2019/12/23/20991659/ebook-amazon-kindle-ereader-department-of-justice-publishing-lawsuit-apple-ipad
https://www.publico.pt/2016/02/13/sociedade/noticia/a-geracao-que-quer-transformar-isto-tudo-1723002
Hiperligações dos projetos mencionados
http://bndigital.bnportugal.gov.pt/
https://bibliotronicaportuguesa.pt/
https://gulbenkian.pt/publicacoes/
http://www.pnl2027.gov.pt/np4/livrosdigitais.html
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