Manuel Afonso
“You get the money first, then you get the power, then you get the woman”: o resumo do American Way, exportado para o mundo pelo Capitalismo americano.
Uma sequência imortal de Scarface, que funciona como uma metáfora abrangente, cinicamente pragmática, do caminho para o sucesso num mundo pragmaticamente cínico. Um mundo a que a Cultura e a Edição não escapam. Ou escaparão?
Scarface é de 1983 e estamos quase em 2021. Após ver a sequência, as palavras de Al Pacino - “money, power, women” - têm ecoado de outra forma na minha biblioteca mental. Uma forma mais ritmada, mais urbana, mais agressiva. E com voz feminina. Há dias que ecoam desta forma, sobre uma batida de fundo- “first you get the money / then you get the power”... Não foi de Al Pacino que aprendi esta fórmula. De onde foi?
Estamos em 2020: fui tirar a teima recorrendo ao método do Miguel Ângelo – não o da Capela Sistina, mas o da nossa turma. O Google é como o algodão: não engana.
Na boca retangular do motor de busca, que tudo engole e regurgita, coloquei a deixa de Pacino: “first you get...”. O Google não espera, antes de terminar o pedido, serviu-me a refeição já mastigada.
Ice-T, Tracy Marrow. A primeira grande referência do Hip-Hop da Costa Oeste Norte-Americana. Também ele viu o Scarface, também ele assimilou a deixa de Pacino e desconstruiu-a sob o prisma de uma outra crítica crítica. Gangsters há muitos – Scarface, Ice-T, Trump –, tantos quantas há Américas. Na sua música, “Money, Power, Women”, Ice-T problematiza Scarface:
“The problem is you broke, You ain't got no car or job / You slow with your hustle, You dress like a slob / Ladies ain't looking for no brothers like this / They want the dub-twisting / ballers with the ice on their wrist / You gotta get your cash right to get in the game / Might have to pull a pistol, Flip some caine /Get out in them streets and hustle hard in the rain / Take your come up and reinvest to the game / 'You gotta make the money first' / You need a lot to go far”
Não é tão fácil como pinta Pacino: a questão não é a necessidade do dinheiro, é como lá chegar. Mas Ice-T vai mais longe: “Juice is more important than cash for real / Money you spend but true power you feel” Dinheiro sem “sumo” fica curto, gasta-se. Sumo aqui é talento, conteúdo, mensagem. Pode parecer uma conclusão ingénua. Mas não caiu a Babel? Falo da Editora, nem preciso de ir à Torre...
Ainda assim, desta vez, o Google está errado. Não era a voz do Ice-T que ecoava as palavras de Pacino na minha cabeça atafulhada. Nunca fui muito fã de Gangsta Rap e a voz que piscava no fundo da minha discografia mental era feminina...
The Woman
Lauryn Hill, Final Hour: “You can get the money / you can get the power / but keep the eyes on the final hour”. A moral agora é outra. Educada no evangelismo e convertida ao rastafarianismo, a ética redentora de Lauryn Hill não está no “sumo” mas na sumidade – divina, pois claro. Isso não a impediu de passar três meses presa por sonegação de impostos: actriz, cantora e estilista, já tinha o money, o power, era The Woman. Mas uma mulher negra. Não escapou à justiça que é cega perante tantos outros sonegadores fiscais e a sua carreira musical estagnou. Com muito mais talento – e muito mais juice - que Ice-T, lançou apenas um álbum, contra os 26 deste. Money, power e juice não bastaram.
Mas há uma nova geração, uma nova América, um novo sumo. Juice é um dos hits de Lizzo. Nascida em 1988, ela é o rosto de uma nova geração de mulheres rappers – activista do Black Lives Matters, militante LGBT e rosto da luta contra a gordofobia. Mais além da ética bíblica de Lauryn Hill e dos gansterismos simétrico de Ice-T e Scarface, Lizzo tem hoje poder, dinheiro e é uma referência cultural incontornável. Nunca deve ter visto a famosa deixa de Al Pacino. A sua mensagem é outra:
“If i'm shinning, everybody gonna shine / (Yeah, i'm goals) / i was born like this, don't even gonna try / (now you know) / i'm like Chardonnay, get better over time / (So you know) / heard you said I'm not the baddest bicth, you lie (...) Gotta blame it on my juice”
Scarface, de tão boquiaberto, ficaria com uma caimbra no maxilar perante este power. Uma nova ética de empoderamento na primeira pessoa, numa América – chamemos-lhes Estados Unidos, para ser justos – pós-Scarface e Ice-T e a caminho de ser pós-Trump. Não é uma novidade, Lizzo tem antecedentes, de Spike Lee, a James Baldwin, Angela Davis ou Fredrik Douglass. Mas ocupa o palco com uma centralidade nova – ela já conquistou o centro, ela é The Woman.
Lauryn Hill, vinda da classe média e apontada como menina prodígio aos 10 anos de idade, eclipsou-se no auge da carreira. Ice-T foi um gangster da vida real, assaltou carros e traficou droga, antes de servir o digno exército norte-americano, cujos assaltos e tráficos são de outra monta – ficou para a história do Rap. Lizzo, poucos anos antes do estrelato, viveu num carro e esteve prestes a desistir de tudo. Há vários caminhos da margem para o centro.
Não é isto motivo para nos iludirmos. Trump não saiu ainda da Casa Branca e, em certa medida, não sairá mesmo quando Biden der entrada. O poder é ainda gangsterismo e dá razão a Scarface. Mas não sem conflito e oposição. Nas ruas, nos média e na cultura novos caminhos são trilhados – sempre foram. Babel também caiu.
Referências musicais:
Ice-T: https://www.youtube.com/watch?v=b9-NllZhkkU
Lauryn Hill: https://www.youtube.com/watch?v=3VnAdQghhOY
Lizzo: https://www.youtube.com/watch?v=XaCrQL_8eMY
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